domingo, dezembro 30, 2007

Dimensão



De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Vinícius de Morais



Um dia de cada vez, sem olhar o calendário, sem olhar o espelho, sem olhar a natureza quieta, com a vida de mansinho a fervilhar por dentro dos troncos sem folhas.

Só a cadela além, do outro lado da rua, presa na corrente pesada, deitada de costas, a colher o calor do sol sobre o cimento, de patas erguidas. Aqui a toalha estendida no varal, a toalha bordada pela Mãe, as flores coloridas num desenho irregular sobre os quadrados do adamascado cru. Os guardanapos. O saco do edredão que faz esquecer os lençóis de bilros que não se usam mais. As azeitonas que restam, algumas ainda verdes. A magnólia cheia de promessas. A abóbora feia, torta, que ao primeiro golpe acende uma coloração de gema de ovo esplendorosa.

O silêncio da hora da sesta.

Não sei se o destino existe. Não sei também se somos nós que o determinamos, seja ele qual for. Sei que somos nós que escolhemos os destinos nas encruzilhadas da vida. E são tantas. A senda que nos parece certa numa determinada altura, porque a mais fácil, a mais plausível, a mais natural, foi um logro. Mas percorreu-se. Nem vale a pena voltar para trás, apenas procurar uma nova encruzilhada e arrepiar caminho. Olhar o trilho do sol e enquadrar o novo espaço com o nascente e o poente. Olhar os seres que cruzam os céus, os mares, ver como seguem a rota dos seus antepassados. Quem sou eu? Partir de onde vim e aprender com o que já percorri. Quero o fulgor do sol? O calor do deserto? A alvura da neve?

Bater as asas e deixar-me levar pelas correntes, dissolver-me no azul. Do céu. Do mar. Perder o horizonte.

Passar para a outra dimensão.

quinta-feira, dezembro 27, 2007

Noite de Natal

«Mais la plus belle de toutes les étoiles, maîtresse, c’est la nôtre, c’est l’Étoile du Berger, qui nous éclaire à l’aube, quand nous sortons le troupeau, et aussi le soir, quand nous le rentrons. Nous la nommons encore Maguelone, la belle Maguelone qui court après Pierre de Provence (Saturne) et se marie avec lui tous les sept ans.

– Comment ! berger, il y a donc des mariages d’étoiles?

– Mais oui, maîtresse.»

Alphonse Daudet




– Sozinha aqui na fogueira? A matar saudades, ou quê?

– Nada disso. Estava a ver se lobrigava daqui a Estrela Polar…

– Cuidado, prima! «Nã fiar no céu estrelado, quando o grelo sai do nabo!» Nã conhece este provérbio?


Não conhecia não senhor. E ele tinha a razão consigo, que a chuva não se fez esperar no dia a seguir.


O Leonel é o guardião da fogueira.

Ele a acende todos os anos para a Consoada e cuida por que não esmoreça, arrastando com uma grande forquilha aqueles toros e raízes enormes que lhe mantêm o coração de brasa, apesar da chuva. Os ajudantes variam, ausentes os homens mais velhos que já não tornam, ou os mais novos que demandaram outros fogos mais longe, nem sempre presentes.

O Leonel é o mais novo dos primos – da nossa geração – que partilham desde há décadas o calor e a harmonia desta labareda em cada Natal.

Ribatejano dos quatro costados, de poucas falas, amigo, ele conhece as saudades de todos os que se rolam à fogueira e param o olhar nas chamas, os clarões de fogo que trazem os rostos de outros natais. Nós nos confessamos a ela e ele conversa com a fogueira. Pelo menos assim parece.


Da geração que se segue para manter a tradição, os sorrisos que nos dão alegria.

E a mais nova é a filha do Leonel.


sábado, dezembro 22, 2007

A Consoada


Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe:

– Boas festas! – desejou-lhe então, a sorrir também.

Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas, crescia água na boca; que mais faltava?

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.

– É servida?

A santa pareceu-lhe sorrir outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.

– Consoamos aqui os três – disse, com a pureza e a ironia dum patriarca. – A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.

Miguel Torga



terça-feira, dezembro 18, 2007

Sinestesia


«O amor, a amizade e quantos
Mais sonhos de oiro eu sonhara, 
Bens deste mundo, que o mundo
Me levara
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me,
Deixado só, nulo, atónito, 
A mim, que tanto esperara
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que morte
A vida que então vivia…»
José Régio



Quero entrar na serenidade do tempo que a quadra me proporciona, mas a angústia prevalece.

Não consigo criar empatia com esta natureza sem viço, as folhas sem tom, tristes, caindo doídas, os ramos negros de humidade nas árvores, esta morrinha a carpir a saudade dos que me deixaram nestes outonos.

Sei, sei! Que a Idade Média não foi um tempo de trevas porque possibilitou o Renascimento. Sei que é preciso esperar a manhã num sono quieto, sei que a natureza descansa mas não dorme. As crias desenvolvem-se no ventre dos troncos escuros, como os ursos procriam na profundeza dos gelos. Por enquanto.

Até os pardais deixaram os telhados, não os vejo nem ouço, nem me recordo de outro Inverno com eles ausentes. Deixaram campo aberto aos piscos que debicam as azeitonas maduras, já vi uma ou outra arvéola de cauda balouçante e o melro, sempre presente. Vivo, ladino, o bico amarelo espalhando o cascalho à procura do sustento, mal o dia aponta, ainda a geada cobrindo a relva.

O Natal chegando devagar, já sem o sabor de outrora, da azáfama dos dias ansiados por cada ano longo e demorado, a seira cheia de figos a anunciar os sonhos e rabanadas, a Consoada enfim, os presentes no Dia de Natal pela manhã cedo.

Agora o ano é mais curto, só os sonhos persistem, sonhos que são mentira na boca, sonhos que são mentira na alma. Quando são verdade, deixam de ser sonhos.

Dos sonhos, sonhos, a sinestesia que permanece no murmúrio do odor, do paladar, do calor, com os olhos da alma.

sexta-feira, dezembro 14, 2007

Não Esquecer


Estou só. Mas é-me impossível gritar – para quê?

Às vezes, mas raramente, o grito sobe, enrola-se-me na garganta e o mundo recua bruscamente para uma estranheza absurda. Mas é raro e tudo reflui de novo como uma pedra que subisse muito alto e desistisse no fim. E ainda bem, porque os sentimentos são um vício – ou não? O povo diz «o comer e o ralhar vai do começar». Mas tudo vai do começar: o amor o ódio, o choro, a ternura, o medo.»

Vergílio Ferreira



Não me apetece escrever.

A geada cai despudoradamente sobre tudo o que sobra do jardim, garimpando pelas sombras até manhã bem alta. O sol corre baixo, muito baixo, e ilumina os dias até ao fim de tarde chegando cedo, que a noite impera.

Sei que os homens inventaram o Natal colorido, as árvores gigantes, o brilho das luzes que enfeitam as ruas, que fazem sonhar as crianças e esquecer os adultos das outras, famintas, de barriga crescida e ossos salientes, que a Cimeira de África na Europa prometeu não esquecer.

Mas não esquecer é um pouco diferente de lembrar, que lembranças são algo que existe, que tem corpo, seja uma rosa, seja uma daquelas Torres Eiffel pequeninas que até serve de lima para as unhas, seja uma tartaruga de jade que significa longevidade e se compra em Chinatown para recordação, seja o que está bem guardado nos escaninhos da memória. Sempre algo palpável.

Não esquecer é uma coisa mais vaga. Há demasiadas coisas misturadas para «lembrar de não esquecer». É assim como uma prateleira de várias estantes onde há muitos livros, novos, antigos, de capas brilhantes e outros já sem lombada, à mistura com bibelots, fotografias, caixas com novelos de linha, dicionários, dossiers, cds, até um candeeiro. Porventura o mais valioso, o mais urgente para ser lembrado está naqueles livros cuja lombada já nem é, que é preciso manusear com cuidado, de papel escuro e baço. Aí a maior riqueza a não esquecer.

Mas essa urgência de encadernar os livros antigos é disfarçada pelas molduras de exóticos trajes de nómada, de negros de óculos brilhantes e pele luzidia, de senhores que se eternizam no poder de esmagar os mais fracos.

Que mão tem força para os afastar e encadernar os livros?



sábado, dezembro 08, 2007

Esperança



«Só desejava a campina

colher as flores do mato.

Só desejava um espelho

de vidro, para se mirar.

Só desejava do sol

calor, pra bem viver.

Só desejava o luar

de prata, pra repousar.

Só desejava o amor

dos homens, pra bem amar.

Oh! que fizeste, Sultão,

de minha alegre menina?»

Jorge Amado






Aqui onde moro, vive uma ribeira.

Há algumas décadas, fertilizava campos de arroz; há séculos teve direito a uma ponte romana, entretanto desaparecida sob camadas de cimento e asfalto. Para ela descia um pequeno córrego da colina além, córrego que já não é, ficando a marca que divide duas propriedades.

Actualmente um dos proprietários, nonagenário, magro, escorreito ainda, desce o pequeno vale, enxada na mão, a limpar a sua margem. Deliberadamente, ao longo dos anos, foi desviando o caminho do córrego, gradualmente retirando uns centímetros de terra ao vizinho, no seu afã de limpeza. Hoje é notória a linha curva que parte do marco que divide as duas propriedades, nogueiras e pessegueiros convenientemente plantados ao longo da berma.

Nada a fazer, há sempre quem conte com a educação dos outros.

A cimeira de África mereceu-me estes pensamentos comezinhos. África de falsas fronteiras, que os Europeus dividiram a seu bel-prazer, a régua e esquadro, sem respeito pelas fronteiras naturais. E quando falo de fronteiras naturais, não digo as fronteiras físicas do terreno, porque nem sempre os rios dividiram gentes, antes as uniam em suas margens. Falo de fronteiras humanas, o respeito pelos povos, pelas suas afinidades culturais.

A cimeira, que junta em Lisboa este fim-de-semana os representantes dos povos africanos e europeus, é por si só uma conquista. A primeira batalha, depois da outra, já ganha com demasiado sangue e sofrimento de ambos os povos, brancos e negros, da outorga de África aos autóctones.

À distância de meio século, saibam os antigos colonizadores despertar os novos – da mesma raça – para o respeito étnico dos valores de cada um, dentro do mesmo país.

Que o esforço gere polémica e a refrega seja útil, principalmente para os direitos humanos.

Assim teremos um mundo melhor.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

A Máquina



«E o jantar veio para a mesa; rompeu a agradável orquestra de garfos e facas, para muito boa gente mais harmoniosa que as melhores partituras de Bellini ou Donizetti; e todos empreendemos, como aliados, numa batalha, cujos destinos não podiam ser duvidosos.

O médico e o abade, esqueceram por um pouco a recíproca antipatia; contudo esta afabilidade diminuía na razão directa do apetite. À sopa, eram quase amigos, ao cozido, tolerantes apenas; mas quando chegou o prato de meio, já os primeiros assomos de hostilidade começavam a transparecer. Um frango guisado foi o pomo da discórdia.»

Júlio Dinis


Fascinam-me as máquinas, por simples que sejam.

Havia dantes, em casa de meus pais, enormes fogões a lenha que eu admirava. Havia um na fazenda e um outro enorme na cidade. A minha cidade. E era tão grande e pesado que, quando mudámos para a casa nova, ele não foi para a cozinha. Talvez porque não coubesse, talvez porque não se coadunasse com a decoração, mas principalmente para que não fumasse na casa, escurecendo as paredes.

Então foi preciso construir para ele um alpendre no quintal, por trás dos anexos. Tudo porque não se passava sem aquela máquina multifuncional, de forma alguma substituível por um moderníssimo fogão a gás de quatro bocas embora a meio com uma placa para grelhados. Este ficava bem na cozinha, pouco mais que para enfeitar, uma ou outra vez experimentar um bolo no forno.

O Cozinheiro era um maquinista atento e cuidadoso. Pela manhã cedo o acendia, como eu hoje ligo o computador. Era todo em ferro escuro, com as bocas tapadas por discos que se tiravam (ou não, porque o central tinha um buraco onde cabia um dedo), consoante fosse preciso mais ou menos calor, de acordo também com o tamanho da panela a aquecer. Os discos sobrepunham-se perfeitamente uns sobre os outros. Na frente, uma barra grossa de metal reluzia a toda a largura, à força de solarine, tal como a torneira pequena de uma só haste, que só deitava a água da caldeira de cobre quando em posição vertical à face do fogão. Posicionava-se à esquerda, pois que à direita havia o forno, com um tabuleiro a meio, e, abaixo dele ainda um espaço para guardar as travessas sem deixar arrefecer a comida. Ao centro o fogueirão, onde entravam os toros de lenha logo trancados pela porta de aldraba, como todas as outras, com punhos enegrecidos, que só brilhavam em dias de grande limpeza.

Aquela máquina era a força da casa, o seu arrimo.

Fervia o leite para os meninos, logo cedo, aquecia a água para o café e para o jarro nas manhãs frias de cacimbo, iniciava o ritual da sopa, preparava as refeições da casa, cozia os bolos, grelhava os bifes de caça na chapa. Fazia a goiabada e o doce de loengo. Cedia as brasas para o ferro de engomar a roupa, fazia a comida dos cães. Pela tarde ainda se aproveitava dele a cinza para arear as panelas e os talheres de alpaca. E para estrumar a horta.

Naquele alpendre das traseiras, batia o coração da casa. O ruído das conversas que eu não entendia, as risadas, os cheiros, os sabores dos fritos de canela e açúcar roubados antes da mesa, o cão à espera.

Anos volvidos, quando regressei do outro continente, o coração já não batia.

A casa grande e bonita estava lá.

Mas eu não a encontrei.



sábado, dezembro 01, 2007

Viver do Sonho


«As quatro velas nos ângulos do caixão, derreadas de cansaço, endireito-as, esforço-me por, pingavam para o chão.

– Por que é que foste para jornalista? Uma vez contaste-me, achei tanta piada. Mas o que tem mais piada é tu acreditares na causa e efeito. Porque primeiro é-se e depois demonstra-se por que se é. E à beira do mar devias ter frio. Sinto-o mesmo aqui. Se fechasses a porta?

A sós contigo. Toda a história do mundo reduzida a mim e a ti. Com muitas circunstâncias adjacentes sem importância nenhuma.»

Vergílio Ferreira




Os sonhos, só porque são sonhos, nunca se assemelham à realidade. Brotam da exaltação do sono num contexto febril: quando são bons, são sempre em versão melhorada do real, quando são maus, são infinitamente piores.

Um dia sonhei a morte de meu pai. Não sei precisar os motivos ou os acontecimentos que o cercaram, situa-se algures pela infância. Recordo apenas que sofri desabaladamente durante meses, senão anos, com a ideia de o perder. Era o tempo em que o meu mundo só fazia sentido com a sua presença, a segurança da sua alegria, a sua imortalidade.

Quando a sua morte me foi anunciada – por ele, por aquela força que nos unia – e, logo a seguir, pelos telefonemas que exigiam a minha presença longos quilómetros além de mim, eu reagi com dor, sim, mas com beatitude, iniciando a vida que se me oferecia com novo espanto, com novas certezas. Afinal com as certezas em que me fui afirmando, a exemplo de tudo o que me transmitira. Não fui ao seu enterro.

As consequências foram devastadoras. Devastadora terá sido também a dor dos que então o acompanharam e nunca me perdoaram a decisão. Lamento e sinto remorso por isso, pelo sofrimento causado aos vivos, mas não me arrependo. Afinal, fui coerente comigo. E com ele. Com o nosso espírito que planava em paz.

Quando acordo numa manhã fria, na certeza dum sol que não aquece, eis que as nuvens marcham caudalosamente e preenchem o espaço antes azul e se enovelam sem chuva, adoçando o ar, em abraços sozinhas, afagando-se.

E o cinza aquece o pinheiro alto que se destaca e, nele, o ninho de Inverno do melro negro.

quinta-feira, novembro 29, 2007

Amargamente

«Gabriel Garcia Marques referiu-me, muito ofendido, que lhe tinham suprimido em Moscovo alguns trechos eróticos do seu maravilhoso livro Cem Anos de Solidão.

– Isso foi muito mal feito – disse eu aos editores.

– O livro não perde nada – responderam-me; e percebi que o tinham cortado sem má vontade. Mas podaram-no.»

Pablo Neruda




Acidentalmente.

Encontrei esta noite Maria João Rodrigues, no Clube de Imprensa, no Canal 2, a defender com galhardia a importância da União Europeia no mundo actual (obstinado em dominar pelo poder económico e político) no que toca principalmente a Educação e a Cultura – contra uma outra ideia de decadência.

Curiosamente.

«La Consistencia de los Sueños» é uma exposição que encerra as comemorações dos 85 anos de José Saramago, o Prémio Nobel, o nosso primeiro Nobel de Literatura, e tem um título que não é escrito em português.

Esta mostra, que lhe retrata a vida desde a infância e adolescência através de milhares de documentos, fotografias e variado suporte informático em cartas, traduções, críticas literárias e todos os seus livros, mesmo os primeiros poemas do escritor, não é escrita em português.

A exposição que deverá chegar a outros continentes, que permite divulgar quem foi o homem, o intelectual e o activista político e social que é José Saramago não é escrita em português.

Lamentavelmente.

Eu sei que o Prémio Nobel de Literatura 1998 causou muitos engulhos aos portugueses: a sua escrita de um fôlego só – eu, que venero Eça e me enterneço com Lobo Antunes – o seu activismo político, o seu radicalismo, o seu iberismo.

Mas há o homem: Português. Dorido. Frontal. Determinado. Lutador. Ganhador.

Há o Escritor fecundo que foi crescendo e nos deixa uma obra memorável.

Não sei se merecemos estar na União Europeia. Espanha merece.

O Ministro da Cultura de Espanha esteve presente.

A Ministra da Cultura de Portugal não esteve presente.

Deve ter marcado cabeleireiro.



terça-feira, novembro 27, 2007

As Horas









«Parece, de súbito, que não está na sua cama, mas sim num jardim incrivelmente viçoso, de um verde mais do que verde: uma visão platónica de um jardim simultaneamente simples e misterioso, sugerindo, como todos os jardins sugerem, que, enquanto a velha de xaile dormita no banco de ripas, qualquer coisa viva e antiga, uma coisa que não é nem benévola nem malévola e exulta apenas na continuidade, entrelaça e une o mundo de quintas e prados, florestas e parques. Virgínia move-se pelo jardim sem poder dizer-se que anda: flutua nele, qual pluma de percepção, incorpórea. O jardim revela-lhe os seus canteiros de lírios e peónias, os seus caminhos de saibro debruados a rosas cor de creme. Uma donzela de pedra que o tempo se encarregou de amaciar ergue-se na beira de um tanque cristalino e medita de olhos postos na água. Virgínia desliza pelo jardim como que impelida por uma almofada de ar; começa a compreender que existe outro jardim debaixo deste, um jardim do mundo subterrâneo, mais maravilhoso e terrível do que este e que é a raiz de que nascem estes relvados e estas pérgulas. É a genuína ideia de um jardim e está longe de ser tão simples quanto é belo.»

Michael Cunningham



sexta-feira, novembro 23, 2007

Guerra perdida?



Antes de entrar no remanso do fim-de-semana, dei com um desafio «que anda por aí» e de que já tinha dado conta: abrir o livro que tiver mais perto na página 161 e transcrever a 5ª frase inteira. Não participo, por norma, nestas correntes, mas passei agora pela APC e ela limita-se sugerir a continuação da brincadeira a quem achar por bem fazê-lo.

Acedi.

Como quem não quer a coisa, deito mão ao livro que tinha aqui ao lado, em cima da mesa, procuro a página apenas para ver se a frase me passaria algum sentimento, impressão, alguma sensação que me tocasse. Aconteceu.

Era como que uma guerra perdida de antemão, algo de indefinível. Isto diz Pablo Neruda em «Confesso que Vivi».

Não li o antes nem o depois, mas acendeu aquele sentimento indelével de que algo se vai passando de inexorável no nosso tempo presente que prenuncia uma luta que quer começar mas ainda não teve início, a batalha que se quer travar mas tarda em reunir armas e munições, gentes, vontades; mais do que isso, empenho, entusiasmo, força, desafio. E depois, quero dizer, antes, medo, mas medo a sério da guerra em que todos seremos o inimigo.

De alguém forte, mas tão forte, que só todos os povos aliados da Terra poderão fazê-la recuar.

É a ferocidade de uma Natureza ferida, continuamente agredida e desonrada na grandeza que sempre disponibilizou para nós, na prosperidade que nos concedeu ao permitir que nos servíssemos dela, na beatitude do seu equilíbrio.

Temos pouco tempo para a conquistarmos de novo.

Cada vez menos tempo.



terça-feira, novembro 20, 2007

Ironias...

«É por isso que a liberdade de expressão (e, em geral, as dos direitos humanos) na China não é um problema chinês, mas algo que nos diz respeito a todos. A China, onde se realizarão no próximo ano os Jogos Olímpicos e onde, segundo a Amnistia Internacional, são executados por ano entre mil e oito mil pessoas, tem neste momento presos centenas de jornalistas, internautas e activistas dos direitos humanos. »(...)

(...) «A China gastou, em 2006, 19 mil milhões de euros em investigação de tecnologias de censura da net. E está já a exportá-las para outros países. Esperemos não vir a descobrir à nossa própria custa que, quando um homem não é livre, a liberdade de todos os outros está em risco.»

Manuel António Pina


Ler é um atentado à nossa integridade emocional. E nem digo ler um manual de filosofia ou uma grande obra de um escritor conceituado, um qualquer prémio Nobel. Felizmente basta-nos ler o que sai da pena leve de um simples fazedor de crónicas, daqueles seres como nós, companheiros semanais que até nos olham com bonomia do fundo da página, de cigarro na mão politicamente incorrecto.

Politicamente correcto, Manuel António Pina, na última página da Notícias Magazine, traz-nos a Grande Muralha da China, uma das maravilhas do mundo, e com ela nos acena sentindo nós a dor dos operários que a construíram sabe-se lá com que coacções – a palavra do presente.

Sou coagida a acordar para o que tenho entre mãos, este computador que até tem um IP que eu desconheço e a Microsoft conhece, mais a Google que controla o diário que não tenho mas poderia ter, mas sabe dos meus desabafos e conversas íntimas com os meus filhos e parentes, amigos e amigas, que conhece as minhas passwords para entrada nas minhas contas bancárias, que tem afinal o segredo dos meus segredos.

Ler tudo o que nos aparece é presentemente um desassossego. Estava eu decidida a deixar de comprar uma determinada marca de comida para o meu cachorro, porque tinha sido confrontada com os horrores praticados sobre animais em experiências feitas pela empresa que é detentora da marca, e eis que o animal adoece sempre que mudo de marca de comida. Horrorizada com as actividades da Yahoo! fornecendo às autoridades chinesas informações particulares sobre um jornalista que o conduziram a uma prisão injusta, eis que reparo que a Google e a Microsoft se prestam a actividades semelhantes.

Eu não vivo sem computador, sem um motor de busca.

O meu cachorrinho morre com outra marca de comida.

Tenho de optar: dou de presente o computador no próximo Natal e passo a cozinhar para o cachorro ou fecho os olhos à evidência.

sexta-feira, novembro 16, 2007

Comportamentos


Não vale a pena no fundo planearmos coisa nenhuma para a nossa vida. As nossas vidas serão sempre mesquinhas se elas se incluírem dentro do restrito tempo e dentro do restrito espaço em que nossas vidas podem desenvolver. Elas só são grandes, quando nós incluímos, juntamente com a vida dos que viveram antes de nós e juntamente com a vida daqueles que são nossos contemporâneos, a vida daqueles que virão depois de nós.

Agostinho da Silva




Parece que os outonos se desdobram, cada vez mais frequentemente, em primaveras serenas, cheias de beleza nos dias sossegados, sem vento, só a temperatura lentamente a trocar as voltas.

Até as rosas permanecem, quase pondo em questão aquela outra de el-rei trovador – «Rosas em Janeiro?» – que consagrou santa uma rainha no nosso Portugal ainda menino, recém-nascido para a língua portuguesa. Na lucidez dos dias que correm, santa seria, não pelas rosas que ao calor do regaço se fizeram pão, mas pelos sorrisos ao senhor seu rei, que em trovas de amor cantava loas às suas aias.

Mas o cair de chuva faz-me falta. O que mais fortemente marcou a minha infância foram as nuvens escuras troando, riscando o céu de luz, aglomerando-se diariamente em castelos no horizonte, pela tarde, e as cordas de água que se soltavam pesadamente, em torrentes, os arco-íris enfeitando os céus e logo depois aquele ar limpo, de sol outra vez, deixando o brilho e o cheiro da chuva.

O tempo mudou e os tempos mudaram.

Nas flores, nos amores, nas trindades que já não tocam nos sinos da aldeia.

O progresso trouxe as máquinas que dizem as horas, que fingem os amores, que fabricam as flores sem perfume. E trazem a morte mais cedo pelas estradas onde rolam.

O tempo mudou e os tempos mudaram.

Nós também temos de mudar.

quarta-feira, novembro 14, 2007

Conscientemente


Conscientemente escrevo e, consciente,

medito o meu destino.

No declive do tempo os anos correm,

deslizam como a água, até que um dia

um possível leitor pega num livro

e lê,

lê displicentemente,

por mero acaso, sem saber porquê.

Lê e sorri.

Sorri da construção do verso que destoa

no seu diferente ouvido;

sorri dos termos que o poeta usou

onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;

e sorri, quase ri, do íntimo sentido,

do latejar antigo

daquele corpo imóvel, exumado

da vala do poema.

Na História Natural dos sentimentos

tudo se transformou.

O amor tem outras falas,

a dor outras arestas,

a esperança outros disfarces, a raiva outros esgares.

Estendido sobre a página, exposto e descoberto,

exemplar curioso de um mundo ultrapassado, é tudo quanto fica,

é tudo quanto resta

de um ser que entre outros seres,

vagueou sobre a Terra.

António Gedeão



sábado, novembro 10, 2007

Desencanto


«Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto

Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.

Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...»

Mário de Sá Carneiro



O ar que corre manso na beira-Tejo não é o mesmo que ajuda a levantar voo a viuvinha-de-rabo-comprido nos capinzais do Queve, o meu rio. Aí, a quietude é mais perigosa porque há sempre dois olhos à espreita nas águas barrentas da lagoa, há por ali um sáurio quieto a colher o sol, escondido na cama fofa, ao lado do areal onde os ovos chocam no calor dos trópicos. Só o odor pestilento nos alerta para a iminência de um golpe de cauda repentino, que deita ao chão a presa, logo abocanhada em pressa a afogar no pantanal.

Como trocar esta segurança pelo mistério apelativo de uma recordação bem funda no tempo? Só o papel aceita tudo: o vagar no longe do horizonte imenso, numa solidão que não é, numa angústia que é prazer, o mergulho do corpo inteiro na água tépida, o cabelo sem cãs colado ao rosto, a alegria insana da inocência.

Apagar na tecla os dias sem retorno, nunca saciados, viver saltando a corda, afoita, contando as voltas, uma, duas, três, apanhar-lhe o ritmo e entrar nos saltos, depois jogar ao ringue, correr nas escondidas e bater no coito. Como tudo se alterou no fluir do tempo, dos anos, da comunicação, dos contextos, da semântica das palavras!

Eu quero nascer outra vez. Quero sonhar em navio escondida, levantar manhã cedo e correr à proa, ver abrir as ondas, sentir o infinito do mundo, encher o peito de maresia. Quero olhar os golfinhos e seguir com eles nas ondas, afuselada na esperança dos dias que não chegaram, na fé da força que me legaram, na firmeza do rumo que tenho dentro.

Quero voltar a ser criança e não ter medo.




segunda-feira, novembro 05, 2007

O Paraíso


A propósito de Rojas Giménez, direi que a loucura, certa loucura, anda muitas vezes de braço dado com a poesia. Assim como custaria às pessoas equilibradas serem poetas, talvez custe muito aos poetas serem equilibrados. No entanto a razão ganha sempre a partida, e é a razão, base na justiça, que deve governar o mundo. Miguel de Umamuno, que estimava muito o Chile, disse certo dia: «O que não me agrada, é esse dilema. Que é isso de pela razão ou pela força? Pela razão e sempre pela razão».


Pablo Neruda



Equilíbrio é tudo aquilo que facultou ao homo erectus a evolução, até se tornar o mais temido entre os animais e quase sempre pelas piores razões para o reino a que pertence. O aguçar da inteligência que os levou ao trono, mercê das leis da sobrevivência, a lei natural, deveria ter aperfeiçoado cada vez mais a sensibilidade, aquele sexto sentido que desperta em nós o alarme, sempre que sentimos no outro o temor pela nossa investida. Cada vez mais donos do mundo, cegos pelo poder, olhamos o nosso umbigo, mais e mais afundado em gordura, separado da natureza que possibilitou o nosso esplendor.

Não é sem razão a metáfora do paraíso perdido, após a colheita da maçã pelo primeiro homem. Não no sentido que a nossa religião lhe dá, completamente absurda porque contrária à lei do criai-vos e multiplicai-vos. Só mesmo a incultura pode alimentar o mito. Mas sendo do conhecimento dos homens a mais comezinha certeza de que colher uma maçã os pode expulsar do Paraíso, sabendo que há outros pomos quiçá mais suculentos, não parece digno o Homem de hoje usar a coroa da inteligência.

Plantar um eucalipto em vez de um sobreiro, usar um papel em vez de plástico, reciclar em vez de desperdiçar, replantar em vez de destruir, amar em vez de vilipendiar. Em vez do pássaro-lira dentro de uma jaula, usar uma gaiola bonita com um pássaro de porcelana. E colocar ao lado duas pequenas gamelas coloridas para fingir de bebedouro. E o pássaro?

Deixar que voe e encante os meninos na escola, deixar que

les vitres redeviennent sable

L’encre redevient eau

Les pupitres redeviennent arbres

La craie redevient falaise

La porte-plume redevient oiseau

tal como escreveu Prévert.

No fundo, no fundo, há sempre um Deus para nos expulsar do Éden.



sábado, novembro 03, 2007

S/ título


DSC02256, upload feito originalmente por cibele pinto cardoso.

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quarta-feira, outubro 31, 2007

Os Santos


«A vida é um milagre.

Cada flor,

Com a sua forma, sua cor, seu aroma,

Cada flor é um milagre.

Cada pássaro,

Com a sua plumagem, seu voo, seu canto,

Cada pássaro é um milagre.

O espaço, infinito,

O espaço é um milagre.

O tempo, infinito,

O tempo é um milagre.

A memória é um milagre.

A consciência é um milagre.

Tudo é milagre.

Tudo, menos a morte.

– Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.»

Manuel Bandeira




Eu lido mal com os cemitérios, há que convir. Quando era menina, vivia numa «província» portuguesa de África e os meus pais tinham os seus mortos por aqui, na chamada Metrópole. De modo que o dia dos Finados – dia 2 de Novembro – era lembrado porque havia tolerância de ponto nessa manhã para se ir à missa (na altura não podiam ser celebradas de tarde) e nós não tínhamos aulas. Decerto a véspera, feriado porque os Santos se reuniam todos nesse dia – não no Olimpo, mas algures no espaço azul – seria aproveitado, como hoje, para enfeitar as campas dos antepassados. Foi ritual que não cumpri. O Dia dos Finados era também o dia em que as senhoras se vestiam de preto, principalmente para irem à missa, vestidas de negro por luto, por respeito para com os seus ancestrais.

Creio bem que por aqui, se perguntarem hoje às pessoas em geral, o dia dos Finados terá sido roubado aos Santos, o que tem lógica, que os santos têm já, cada um, seu dia do ano. Digam agora que o povo não tem razão: o dia 2 de Novembro é dia de trabalho e há que aproveitá-lo, e depois, é preciso dar algum sentido a um feriado que o não tem, embora a globalização dos costumes nos tenha contaminado com o Halloween, vulgo dia (noite?) das bruxas. Felizmente no lugar onde moro ainda as crianças vêm tocar à porta por uns doces, chocolates, broas de noz, pedindo o «Pão por Deus», lembrando que é hora de partilha.

Parece-me bem que haja um dia por ano para recordar os nossos mortos, os que nos trouxeram ao mundo, os que connosco conviveram, que nos moldaram, que nos transmitiram o melhor e o pior. Cada vez mais havendo menos espaço para as casas sepulcrais – como que num prolongamento dos haveres terrenos, a exemplo espúrio dos grandes antigos – parece haver necessidade de encontrar outras formas de os venerar, para além da romaria ao cemitério para limpar, esfregar, enfeitar as campas em que repousam.

O novo século tem de reorientar os seus valores, naturalmente inseguros como em todo o iniciar, tem de olhar o futuro com os pés assentes no presente, sem esquecer o passado que nos trouxe até aqui. O presente é magnífico nas suas potencialidades ao nível da tecnologia mas a natureza deve ser respeitada porque ela é a mãe, a «mais velha», a que nunca morre porque continua viva em cada um que cresce, é próprio dela fenecer e dar lugar aos mais novos, revivendo neles.

Aceitar esse facto deve ser prioritário, porque é a lei da vida.


domingo, outubro 28, 2007

Desconfiança

«Sei que seria possível construir o mundo justo

As cidades poderiam ser claras e lavadas

Pelo canto dos espaços e das fontes

O céu o mar e a terra estão prontos

A saciar a nossa fome do terrestre

A terra onde estamos – se ninguém atraiçoasse – proporia

Cada dia a cada um a liberdade e o reino

- Na concha na flor no homem e no fruto

Se nada adoecer a própria forma é justa

E no todo se integra como palavra em verso

Sei que seria possível construir a forma justa

De uma cidade humana que fosse

Fiel à perfeição do universo…»

Sophia de Mello Breyner Andresen




Desconfiança é um sentimento que está nos antípodas da Educação.

Partindo do princípio de que todos somos educados, não há lugar para a desconfiança porque seremos, em consequência, todos democratas plenos e saberemos respeitar-nos. Se há regras a alterar nas leis, novos critérios para aferir comportamentos, então espera-se que tudo seja divulgado, posto a discussão, ouvidas todas as partes e chegar-se-há a um consenso que sirva melhor a todos. Há sempre forma de dividir uma laranja, aprendi. Não vale a pena brigar por ela quando há dois a precisar de uma só. Se eu apenas preciso da raspa para aromatizar uma sobremesa, ou da mesma para a cristalizar, posso ceder os gomos para dessedentar outro. Assim, uma mesma laranja serve na perfeição aos dois, com a vantagem de não haver desperdício.

Aceitemos a palavra do outro. Sem suspeição. Tendo a certeza de que todos cumprem os seus deveres com civilidade. Seria a Idade do Ouro.

Mas o Homem não nasce bom. A história de Rousseau, do bom selvagem, não coincide com a realidade porque o ser humano é, antes de tudo, um animal e, quando nasce, sabe que precisa de sobreviver. Nem que seja à custa do irmão que atira ninho abaixo. Por intuição, sabe que tem predadores e o instinto de defesa é inato. A educação vem da sociedade que cedo lhe impõe as regras, os limites ao seu comportamento. Naturalmente. A urgência de impor o seu lugar no mundo não se coloca, se disso não sentir necessidade, porque não vê o seu lugar ameaçado.

Mas se, pelo contrário, nasce num local agreste, opressivo, duro, violento, ele tem de sobreviver. E porque tem regras na sociedade, e porque tem leis a observar, e porque tem de se proteger, e porque tem de sobreviver, e porque é inteligente, ele desenvolve mecanismos de defesa inimagináveis.

E basta um, um só, para perverter tudo. A desconfiança nasce. E oprime. E fere. E mata.

Também os sentimentos.


sexta-feira, outubro 26, 2007

A Descida

«Não posso adiar o amor para outro século

não posso

ainda que o grito sufoque na garganta

ainda que o ódio estale e crepite e arda

sob montanhas cinzentas

e montanhas cinzentas


Não posso adiar este abraço

que é uma arma de dois gumes

amor e ódio


Não posso adiar

ainda que a noite pese séculos sobre as costas

e a aurora indecisa demore

não posso adiar para outro século a minha vida

nem o meu amor

nem o meu grito de libertação


Não posso adiar o coração»

António Ramos Rosa














































Eu tenho um pote de ouro, antigo.

Tiro a tampa devagar e está cheio de poalha solta e leve.

Meto os dedos nela e sinto um frio doce, macio ao toque, escorregadio.

Retiro uma porção e olho a mão aberta, brilhos espalhados, o mundo inteiro ali, pedaços de papel cor de sépia, dizendo lugares, momentos, gentes que eu nem sei, outras que não estão, outras estando, que já não são.

Assaltam-me frequentemente dúvidas quanto ao facto de sermos nós a escolher a vida que temos. Ela simplesmente acontece.

Nascer ou não em berço de ouro.

Nascer órfão de tudo.

Faz toda a diferença, cedo encontrar quem nos faça entender quanto é importante ter-se consciência do que somos e do que queremos ser, e que o sucesso de uma existência está na força interior que nos leva a ultrapassar barreiras, a derrubar obstáculos, a vencer os limites que nos são impostos. Mercê da idade, do sexo, da religião, da cor da pele, do clã a que pertencemos por nascimento, da sociedade que nos molda o carácter, que nos impõe as regras, que nos faz ver o mundo através do seu olhar.

A educação e a cultura devem facultar as outras objectivas, outros ângulos, outra luz.

Ver diversamente, alguns cedo, outros mais tarde, outros nunca conseguem.

Porém, todos rolam o seixo para a montanha, cada vez mais alta, cada vez mais íngreme.

A diferença, o que nos torna únicos, é o prazer na descida.