terça-feira, dezembro 18, 2007

Sinestesia


«O amor, a amizade e quantos
Mais sonhos de oiro eu sonhara, 
Bens deste mundo, que o mundo
Me levara
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me,
Deixado só, nulo, atónito, 
A mim, que tanto esperara
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que morte
A vida que então vivia…»
José Régio



Quero entrar na serenidade do tempo que a quadra me proporciona, mas a angústia prevalece.

Não consigo criar empatia com esta natureza sem viço, as folhas sem tom, tristes, caindo doídas, os ramos negros de humidade nas árvores, esta morrinha a carpir a saudade dos que me deixaram nestes outonos.

Sei, sei! Que a Idade Média não foi um tempo de trevas porque possibilitou o Renascimento. Sei que é preciso esperar a manhã num sono quieto, sei que a natureza descansa mas não dorme. As crias desenvolvem-se no ventre dos troncos escuros, como os ursos procriam na profundeza dos gelos. Por enquanto.

Até os pardais deixaram os telhados, não os vejo nem ouço, nem me recordo de outro Inverno com eles ausentes. Deixaram campo aberto aos piscos que debicam as azeitonas maduras, já vi uma ou outra arvéola de cauda balouçante e o melro, sempre presente. Vivo, ladino, o bico amarelo espalhando o cascalho à procura do sustento, mal o dia aponta, ainda a geada cobrindo a relva.

O Natal chegando devagar, já sem o sabor de outrora, da azáfama dos dias ansiados por cada ano longo e demorado, a seira cheia de figos a anunciar os sonhos e rabanadas, a Consoada enfim, os presentes no Dia de Natal pela manhã cedo.

Agora o ano é mais curto, só os sonhos persistem, sonhos que são mentira na boca, sonhos que são mentira na alma. Quando são verdade, deixam de ser sonhos.

Dos sonhos, sonhos, a sinestesia que permanece no murmúrio do odor, do paladar, do calor, com os olhos da alma.

15 comentários:

bettips disse...

De sonhos...um pouco grão de alimento. Porque se nos sobra a consciência.
Abraços amigos e obrigada.
Para ti, essa pena límpida.
E que SOL te brilhe um dia destes.

Alien David Sousa disse...

Jawaa, não valerá a pena continuar a sonhar? ;)

Um beijinho e tudo de bom para 2008...e já agora um Natal feliz

Paulo disse...

Álém mar,em África, Arabia,Persia e India que tenham todos um Santo Natal e um Ano Novo (2008) cheio de alegria.

Para você,que seja tudo a dobrar.

Rocha de Sousa disse...

Minha amiga,
Régio admiravelmente bem escolhido para a prosa que publica desta vez
e que de novo nos envolve numa es-
pécie de brevidade, soando em ra- cord perfeito, o plano, a mobili-
dade da contemplação para fora e para dentro, a música da escrita em «moderato», sob a nostalgia de coisas várias, as Festas que já não sabem da mesma maneira, a serenidade que já não se conquista por aí. Lembro-me de coisas iguais assim, mas logo perdidas na adolescência e na juventude, tornando-se paradoxais,
triste e alegres. Depois uma amargura por elas, uma lucidez que
as rejeitava na sua óbvia mentira.
Mas o desejo disso, na mesma.
Pássaros sim. E ainda bem que, do sítio onde trabalho, vejo as plan-
tas na varanda e muitos pardais pousando, piando, calando o cantar
de um canário que aqui ficou desde há uns tempos.
Os anos encurtam, é verdade, mas também é verdade que a sinto, em textos assim, com o seu lado de sombra mais em evidência, talvez pela luta de não querer ser lúci-
da, sendo. É verdade: «os sonhos são mantira na alma. Quando são verdade, deixam de ser sonhos». E é
então que sentimos o tempo, o peso da existência e do que levamos para a cama, um projecto de sonho, algo que nos mobiliza e que talvez surja com a manhã, durante algum tempo.
E assim se diz:«...sonhos, a sines-
tesia que permanece no murmúrio do odor, do paladar, do calor, com os olhos da alma».
Fico à espera de mais.
As minhas histórias são muito
detalhadas para um blog. Ando à procura de um quadro impossível,
num jogo de ritmos. A sua escrita
é muito bonita (mais) porque pa-
rece um passeio, passos pelas fo-
lhas, apontamentos cadenciados na
brandura estrutural do que é dito
e constantemente povoado de memó-
rias.
Seja feliz
Rocha de Sousa

Rafael Almeida Teixeira disse...

Sobre Sinestesia:

Se você pudesse escutar meu olhar
saberia que quis amar você sempre,
era só você me olhar.

Estrada pedras e espinhos
quase furavam meus pés
olhei, olhei e continuei.

Você olhou, olhou o espelho
e viu, viu o que quis.

Hoje sofro de hipermetropia,
não quero você perto dos
meus olhos.


Rafael Almeida Teixeira. Itabuna-BA 24/11/07

Rui Caetano disse...

Ora, Régio, uma dos nossos grandes homens da cultura e da literatura portuguesa. Uma óptima escolha.

Rafael Almeida Teixeira disse...

Dei uma resposta lá.
Têm horas que como qualquer ser humano perco a paciência.

Chellot disse...

Sua sinestesia encantou-me.

Vim desejar-lhe um natal tranqüilo.

Beijos de Sol e de Lua.

Manuel Veiga disse...

quem bom sentir no ouvido um melro pela manhã! salva outras memórias do Natal

Feliz Natal (apesar de tudo)

Buda Verde disse...

tenha boas festas!
e não deixe as flores morrer. sei que é impossivel evitar a morte, mas é bom tentar.

beijo

rui disse...

Olá Jawaa

Desejo que tenhas um Bom Natal, cheio de Paz e muita Alegria.

Grande abraço

M. disse...

Pra mim, este teu texto é como um Inverno límpido que se atravessa.

veritas disse...

Concordo, o natal já não tem o cheiro de outrora, que saudades da cozinha da minha avó...

Bjs. Votos de um bom ano. Cheio de saúde.

Lord of Erewhon disse...

Um FELIZ NATAL para ti e família, e um NOVO ANO com toda a felicidade do mundo.

Sant'Ana disse...

Tantas questões em que se tropeça... eu enovelo-me muito nelas e também nas lembranças que de tão doces chegam a amargar pela distância do tempo e em não haver caminho de retorno.