sábado, dezembro 08, 2007

Esperança



«Só desejava a campina

colher as flores do mato.

Só desejava um espelho

de vidro, para se mirar.

Só desejava do sol

calor, pra bem viver.

Só desejava o luar

de prata, pra repousar.

Só desejava o amor

dos homens, pra bem amar.

Oh! que fizeste, Sultão,

de minha alegre menina?»

Jorge Amado






Aqui onde moro, vive uma ribeira.

Há algumas décadas, fertilizava campos de arroz; há séculos teve direito a uma ponte romana, entretanto desaparecida sob camadas de cimento e asfalto. Para ela descia um pequeno córrego da colina além, córrego que já não é, ficando a marca que divide duas propriedades.

Actualmente um dos proprietários, nonagenário, magro, escorreito ainda, desce o pequeno vale, enxada na mão, a limpar a sua margem. Deliberadamente, ao longo dos anos, foi desviando o caminho do córrego, gradualmente retirando uns centímetros de terra ao vizinho, no seu afã de limpeza. Hoje é notória a linha curva que parte do marco que divide as duas propriedades, nogueiras e pessegueiros convenientemente plantados ao longo da berma.

Nada a fazer, há sempre quem conte com a educação dos outros.

A cimeira de África mereceu-me estes pensamentos comezinhos. África de falsas fronteiras, que os Europeus dividiram a seu bel-prazer, a régua e esquadro, sem respeito pelas fronteiras naturais. E quando falo de fronteiras naturais, não digo as fronteiras físicas do terreno, porque nem sempre os rios dividiram gentes, antes as uniam em suas margens. Falo de fronteiras humanas, o respeito pelos povos, pelas suas afinidades culturais.

A cimeira, que junta em Lisboa este fim-de-semana os representantes dos povos africanos e europeus, é por si só uma conquista. A primeira batalha, depois da outra, já ganha com demasiado sangue e sofrimento de ambos os povos, brancos e negros, da outorga de África aos autóctones.

À distância de meio século, saibam os antigos colonizadores despertar os novos – da mesma raça – para o respeito étnico dos valores de cada um, dentro do mesmo país.

Que o esforço gere polémica e a refrega seja útil, principalmente para os direitos humanos.

Assim teremos um mundo melhor.

5 comentários:

bettips disse...

A imagem perfeita: diversidade das pessoas e respeito. Mais um passinho, curto e importante que é assim que vivemos.
Sabes que há milhares de espécies de camélias?
... ah mas eu também gosto de rosas... parece-me que gosto de tudo o que ilumina a vida.
Um beijo

rui disse...

Olá Jawaa

Gosto da tua escrita.
É madura e sábia, cada palavra no sítio certo.
“Aqui onde moro, vive uma ribeira”. É lindo!
Esperemos que a Europa ajude África, como um seu igual e, não a veja como um Continente inferior.

Que tenhas um bom domingo
Grande abraço

Rui Caetano disse...

O texto é de uma profundidade pouco comum, e então a imagem derrama uma beleza e um encanto fantásticos.

Rocha de Sousa disse...

Amiga,
Li o seu e-mail, gostei da imagem que me deu desse bocadinho em Lis-
boa, com a sua filha (melancolia
minha? e senti um breve mas benigno
abrandamento das trocas e corres-
pondência: concordo com a norma e a medida que propõe. Penso: desde que haja sempre oportunidade para um recado maior sobre coisa maior.
Aquela espécie de «parábola» do ve-
lho corresponde a um processo muito
antigo da oscilação do território entre comportamentos diversos.O resto, sobre a cimeira, aponta para
um caminho de intenções, mas ressalta dele uma mal disfarçada descrença. O mundo não está de facto para ilusões. Acho que Portugal consuziu muito bem, dadas
as circunstâncias, este encontro,
tocando até onde se julgava (por culpas mal explicadas do lado de cá)todos os pontos. Não sou racista
e privei com muitos negros de gran-
de interesse. Mas já percebi o su-
ficiente para não me martirizar com
culpas controversas e entender África como um continente que faz parte do mundo e não apenas aos africanos -- coisa que seria neces-
sário definir melhor.
Boa semana
Estou bem.
As suas palavras têm propriedades terapêuticas, sabia? e não é bruxa.
Até breve
Rocha de Sousa

Luisa disse...

Fiquei encantada com a imagem e as palavras sobre o ribeiro. Também aqui, mansamente, se pode desviar o curso do mundo: basta cavar um pouco mais...