sexta-feira, maio 25, 2007

CRIME

Da dor, ao que se sofre com ela, a gradação não vem só dela mas da nossa própria grandeza. Variará com isso a violência do destino? Porque a força de quem sofre estimula a força de quem faz sofrer. Quem está indefeso ou não pode defender-se retrai-nos o impulso à violência. Por isso o sofrimento de uma criança é o que mais nos pode indignar.

Vergílio Ferreira




Minha Mãe perdeu o seu menino na força da vida, quando tudo estava ainda por acontecer.

Um atrelado sem controle o colheu nas areias quentes da terra de Camus, na mesma sua África que lhe dera o primeiro olhar de luz, as primeiras dores, as primícias de amor de adolescente.

A Argélia que nunca conheci o tragou vertiginosamente e feriu sem remissão uma mãe que vi esmorecer por largos oito anos de saudade e melancolia. A solidão instalou-se onde já era seu reino, o fim chegou porque já não havia mais dor.

A alteração das leis da natureza deixa sequelas em todas as vertentes. Nada pode haver de mais atroz do que perder um filho, quando a natureza estipula que sejam os mais novos a substituir os mais idosos. A ceifa antecipada de alguém que não captou da vida todo o seu esplendor, toda a panóplia de vivências, dor e prazer, deixa em nós uma sensação de injustiça tremenda.

Mas tirarem-nos um filho que sabemos vivo, é sofrer tudo isto em duplicado: a própria dor de perda mais a dor sem tamanho do sofrimento do filho ausentado. Deve atingir as raias da loucura.

Acima de todos os males, o nosso país tem sido assolado por vagas sucessivas de casos de pedofilia que revoltam e constrangem qualquer ser minimamente consciente. Tudo em vão.

Continuo a reflectir sobre o que realmente importa na nossa sociedade: o Dinheiro, não a Dignidade humana.

Só a título de exemplo, ontem surgiu a notícia de um médico que foi condenado a vários anos de cadeia por ter burlado a Segurança Social. Muito bem. Crime profundo ter roubado, ter-se assenhoreado do que não lhe pertencia, ter prejudicado o Estado, os outros… enfim.

Provado porém à exaustão que outros médicos abusaram sexualmente de crianças, que senhores embaixadores abusaram sexualmente de crianças, que outros subsistem principescamente com fundos de redes pedófilas, que… – mais não me ocorre, mas não esgotei os exemplos – que acontece a essas pessoas?

Eu respondo: Seguem a sua vida confortavelmente «vigiados», nas suas casas, seus convívios sociais, seus negócios feios para sustentarem os chorudos ordenados dos advogados (em duplo às vezes…) a breve trecho sua reconciliação com mal-entendidos ligeiros…

É CRIME, é CRIME abusar de crianças indefesas, é CRIME e os criminosos deveriam ser severamente castigados!

Onde e como funciona a JUSTIÇA neste país?

sexta-feira, maio 18, 2007

Força da Natureza

Vem aos meus sonhos,

faz em mim a tua casa.

Planta em frente, a cerejeira dos

pássaros brancos,

deixa que eles pousem nos ramos e cantem

eternamente,

deixa que nas suas asas de luz eu leia o meu

nome

antes de os relâmpagos acenderem os prados.


Vem aos meus sonhos,

vê os labirintos por onde me perco,

vê os meus países do mar,

vê em cada barco que parte do meu coração,

as viagens que não fiz,

os amores que não tive,

a lua cruel da minha solidão.

José Agostinho Baptista



Os choupos tomaram conta dos campos na sua ânsia reprodutora. No céu revolteiam miríades de flocos contra o azul intenso, enfeitam de arminho as roupagens de pessoas e plantas, cobrem o chão ainda húmido. Bonito de ver, menos de sentir, que entram pelas narinas e por todas as frestas da casa, rastejam para os cantos, para debaixo dos móveis, aderem aos tapetes.

Não resisto a contemplá-los, longamente, através das vidraças.

A minha primavera africana era em Setembro, quando chegavam as primeiras chuvas ao planalto, depois do cacimbo ardente e frio que se arrastava desde Maio. O início das chuvas era o renascer da vida por nove luas de calor e humidade. Fazia-se anunciar por castelos de nimbos crescendo cinzentos, num rugir de longe, caminhando sobre nós e desfazendo-se em bátegas de água poderosíssimas a que nenhuma gabardine ou chapéu-de-chuva fazia frente. A solução era parar, resguardar-se e aguardar que o sol anunciasse o caminho livre.

E era então que do chão subia aquele aroma quente, doce, vivificante, aquele cheiro a terra molhada, os carros, o asfalto, as folhas das árvores brilhantes em reverberações de luz; no céu, a chuva indo, no esplendor do (quantas vezes duplo) arco-íris.

Nos campos, na anhara a esverdecer de capim novo, cresciam os tortulhos e amaduravam os loengos. Então, pelo entardecer, também os morros de salalé, fortalezas áridas e mudas de térmitas, acordavam da sua letargia e delas se evolavam nuvens de formigas aladas, aos milhares, – povoando o céu de andorinhas e morcegos – subindo desajeitadamente com as suas asas enormes pelo tempo possível de voo. Porque, assim que tocavam no chão, logo as perdiam.

A globalização não faz sentido, é contra natura. Só a informação pode ser global, o conhecimento partilhado a todos os níveis, com respeito pela idiossincrasia dos povos, estes, sim, condicionados sempre pela força da natureza.

segunda-feira, maio 14, 2007

Lembrando Cláudia


Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,

E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça…


(…)

A missa é um automóvel que passa

Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste…

Súbito vento sacode em esplendor maior

A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo

Até só se ouvir a voz do padre perder-se ao longe

Com o som de rodas de automóvel…


E apagam-se as luzes da igreja

Na chuva que cessa…

Fernando Pessoa



Encontro-me frequentemente com Fernando Pessoa. Pode parecer, mas ele não é pessoa com quem me identifique, que o encontro demasiado deprimido, desiludido, pessimista enfim.

Porém ferozmente verdadeiro.

Aqui e além eu sou ele, mau grado tudo o mais que nos separa. Tenho assim de aceitá-lo como um dos meus poetas preferidos, tendo então de compreender por que é tão estudado, falado, contestado, referido, cantado, por que tão universal.

No último post, transcrevi Pessoa para contextualizar uma frase sobejamente conhecida por todos, citada por alguns, muitos, sem que saibam de onde foi extraída. É aqui muito mais sentida, muito mais forte, muito mais intensa.

Camões foi grande e permanece, porque cantou todos os males de amor sempre reinventados. Pessoa foi ainda mais fundo, muito mais real, seco, directo, profundo.

Poeta das sensibilidades, das sensações, revejo nele Camus, o eterno étranger que sente, sente, percepciona apenas as sensações, e passa. Passa, sem que reparem nele, sem que vejam na sua figura simples, fugaz, toda a imensidão que lhe vai na alma.

Para alguns, a vida é curta e breve.

O sofrimento é parte das nossas vidas, diz na missa o sacerdote católico.

Ler é evasão, esquecimento breve. Escrever é lenitivo para a dor.

Quem dera hoje a mão de Pessoa!

Mas ele já disse tudo.

quinta-feira, maio 10, 2007

A Pátria de Fernando Pessoa


«Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavras. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie – nem sequer mental ou de sonho – transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.

Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio…» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará sentir, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavra inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância de que não tenho saudades; é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.»

Bernardo Soares

domingo, maio 06, 2007

Novo ciclo


Entrego-te as palavras mais brandas

que entre os meus dedos construí

para alimentar de ti os recantos da casa

invadindo o coração da noite…

(…)

e a verdade é que nunca terei outra história

para além da que nos aconteceu

e que ficamos à espera de um dia perceber melhor

porque nunca ninguém se prepara convenientemente

para a chegada do amor

e ele é sempre um convidado estranho

sentado em silêncio na penumbra da sala

olhando os quadros o chão o tecto

como um velho parente da província

com medo de dizer o que não deve.

Alice Vieira




O meu amor do outro lado do mar diz-me que dê azo à imaginação, que um ano mais me fez mais livre, mais independente. Bom, deveras, receber este sopro de vida na entrada de um novo ciclo.

Afinal, a força que nos mantém erguidos vem das raízes, mas também do ar que respiramos, da luz que nos dá o verde da esperança. Os frutos a que entregamos o melhor de nós enfeitam a nossa copa, dão-lhe o colorido e, generosamente, dão-se em perfume e sabor. Bem hajam!

Olhando para trás, atento na data e constato que este lugar conta mais de um ano de vida, o que me traz alguma sensação de prazer pelo dever cumprido. Dever que impus a mim própria, dever para com aqueles que me conduziram, direi me empurraram, para um caminho de algum desafio que me trouxe a serenidade que buscava. Nem sempre foi fácil, nem sempre é fácil, manter um espaço aberto aos outros, aos que me conhecem de longa ou curta data e também aos que, através dele, me encontram sem cara nem nome, a quem me vou revelando, o que quero, o que deixo, quantas vezes o que não desejo aparece sem cerimónias.

Tenho lido muitas considerações sobre o que é um blog, muitas gavetas onde se inserem uns e outros, nem tanto este, que igualo afinal a outros que já encontrei. Direi que o sinto como um acto de criatividade que compensa, um retiro para as horas demasiadas de lazer que sobram de outros quefazeres. Terapia é também o seu objecto, não me restam dúvidas. Tudo cabe neste lugar de partilha. Afinal aqui se revelam gostos e saudades, desafectos e formas de encarar o mundo que me rodeia.

De entre os que visito, prendem-me em particular os que encontro formalmente bem escritos, os que me surpreendem e enriquecem pela imagem, pela escrita, pela mensagem, pela poesia, pela ternura, também pela irreverência. Gosto de saber do mundo pelos olhos de quem opina com sobriedade, com clareza e objectividade. Gosto de encontrar a beleza criada pelos outros, aqui presente muitas vezes em forma de publicidade. Gosto ainda de saber notícias de mundos que já vivi, de encontrar amigos, de reverenciar afectos.

Por enquanto, vou continuar. Agradeço a todos os que me deixam recados, aos que não deixam e sentem comigo, aos que viajam aos mesmos lugares esquecidos no tempo, aos que estão comigo nos dias menos bons e aos que partilham das minhas alegrias.

O acto da escrita para mim foi desde sempre um lenitivo para expurgar angústias ou tão somente para «escrever a vida». Aqui foi qualquer coisa diferente, sem dúvida mais compensador.

Obrigada, Teresa. Obrigada, Paulo. Obrigada, minha Filha.