sábado, junho 30, 2012

AGITAÇÃO


Imperturbável paisagem ante meus olhos.
O gavião soletra o voo nas alturas
E a dócil pomba se aninha
No reverso das horas que serpenteiam
A cinza dos passos calcinados...

O tempo suspende-se nesta nesga de vida.
Nada na canícula perturba o deslizar da memória.

Nem o ouropel do sonho.
Nem o horizonte fugidio.

Indizível linha que se agiganta como espera...

Nem a sombra do acaso.
Nem o olhar da inocência.

Apenas o gomo matricial
Nos lábios ressequidos. E a agitação no peito
Que em nada se despenha. E perdura...

Como serpente mordendo a cauda...

 
E é o mar, o mar outra vez que me consome o desejo irreprimível de mergulhar nele e deixar que me conduza à liberdade de ser, unicamente sentir, a ausência de gravidade, a entrega sem corpo, a sensação indecifrável de deixar-me morrer vivendo a ondulação das vagas.

Tudo isto porque voar não pode ser para além do pensamento, das memórias que fogem e nem sempre se aquietam em voo plano, aproveitando as correntes de vento acima das nuvens que conduzem os pássaros migrantes e os pássaros que os homens constroem enfrentando o poder dos deuses.

O horizonte é a linha que se agiganta no fim do mar, onde o sol se deita depois de pintar a cama de ouro, a seguir o repouso da prata se o planeta menino ainda guardar nele a luz. É esse o espelho de nós à medida que os anos se dobram, quando as cãs enchem as cabeças dos nossos meninos, quando queremos dizer aos filhos dos filhos todos os contos da nossa infância, todos os sonhos bonitos que o dia nascendo apagou, todas as histórias de um tempo que já não pode ser igual.

As manhãs nascem de madrugada quando eles ainda dormem, o sol alto pinta dourados que os inebriam, dias apressados de razão baralhada, logo as noites se enchem de luzes coloridas, sem tempo para olhar as estrelas, ver a lua crescer dia após dia e voltar-se de lado e esconder-se para o sono breve que vai dar-lhe nova vida.

Não há tempo para dar as mãos, sentar a ver o ocaso, acordar cedo e brincar como as crias dos bichos que ainda resistem ao desassombro dos homens.

domingo, junho 24, 2012

NÓS E O MAR

O orgulho não é um exclusivo dos grandes países, porque ele não tem que ver com a extensão de um território, mas com a extensão da alma que o preencheu. A alma do meu país teve o tamanho do mundo. Estamos celebrando a gesta dos portugueses nos seus descobrimentos. Será decerto a altura de a Europa celebrar também o que deles projectou na extraordinária revolução da sua cultura. Uma língua é o lugar donde se vê o mundo e de ser nela pensamento e sensibilidade. Da minha língua vê-se o mar. Na minha língua ouve-se o seu rumor como na de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.

Vergílio Ferreira, «A Voz do Mar»



Temo que a inquietação permanente do guardador de rebanhos que existe no fundo de todos nós não deixa de ser o rumor das vagas que liga a nossa língua aos pedaços de mundo onde chega a fala portuguesa, adoçada de tonalidades, salgada pelas latitudes e de sabor único nos crioulos de Cabo Verde ou Malaca crescendo autónomos.

Temo ainda que o poder e beleza ímpar da nossa língua não se esgote em Pessoa e Camões, como actualmente parece impor-se de modo assertivo, deixada - por exemplo - ao esquecimento a propriedade inexcedível do uso da língua na oratória de António Vieira. O Padre António Vieira que enfrentou aqueles a quem deveria prestar obediência cega, para defender os que precisavam e impor a justiça entre os homens só por o serem.

A geração a que pertenço pagou um preço muito alto por todas as iniquidades cometidas desde os Descobrimentos, já nessa altura por cobiça e ambição desmedida, os seres humanos escravizados, vendidos, vilipendiados. Pagou e doeu muito, negros e brancos fustigados em vários espaços de guerra, guerras de corpos mutilados, guerras de almas devastadas que só a morte vai apagar.

É em nome de tudo isso que a Língua Portuguesa tem de ser mantida e acarinhada com o maior zelo, ela é a medida do nosso país no mundo global, esse mundo onde ela viceja, não por imposição ou violência, mas por um sentimento maior que nos ultrapassa e tem a ver com os afectos, as marcas deixadas na alma das gentes e que perdura por gerações. É obrigação de todos nós não deixar cair as pontes que nos unem, antes reforçá-las em todos os sentidos, por todas as vias.

Temo finalmente que esta união seja o caminho possível para que Portugal tenha a verdadeira consciência da sua posição no mundo e deixe de uma vez de dobrar-se a um servilismo que não faz qualquer sentido.

segunda-feira, junho 18, 2012

Inquietações



São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto físico. É a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo.

Bernardo Soares «O Livro do Desassossego»



Gosto de acordar no fundo da madrugada quando os pássaros ainda no ninho dizem do dia que vai começar, da luz que vai abrir as cores. Há depois, logo a seguir, mal o sol se levanta no horizonte, como que um sossego que incomoda, por que será que as aves se calam? Deve haver uma razão que me escapa e falta-me o meu pai para fazer-lhe perguntas assim desimportantes.

Outras há que me inquietam ainda hoje pela desfaçatez, o cinismo de uma apropriação que vai permanecer porque a memória se constrói por caminhos nem sempre inocentes mas reais, legais e, acima de tudo, por sobre o esquecimento dos homens e a acuidade oportuna de alguns outros.

Ocorrem-me os chapéus ditos panamás que não são oriundos do Panamá, os pincéis de pêlo de camelo que até são de esquilo, a caixa negra dos aviões que não é negra, e agora a Casa dos Bicos a promover um escritor Nobel com um Desassossego que não lhe pertence. Não havia necessidade, diria um grande humorista com propriedade, neste caso. Pelo que me toca, fico em desassossego, porque daqui a poucas décadas, com a iliteracia vigente, o Livro do Desassossego foi escrito por Saramago, como o Elevador de Santa Justa foi construído por Gustave Eiffel - assim eu ouvi dizer aos jovens numa visita de estudo à Lisboa pombalina..

É naquele pedaço de tempo em que as aves se calam na manhã aberta, antes do sol, que as coisas acontecem. Com certeza é natural, natural como termos ganho o jogo com os Holandeses e acordarmos mais felizes, quando o jogo maior se jogou com os Gregos, afinal como nós a quererem manter-se Europeus.

O mundo constrói-se devagar, nem sempre quando e como queremos, como desejaríamos, mas segue adiante, em direcção ao futuro.