terça-feira, agosto 28, 2012

LIBERTO



Responde, por favor:  Deus é quem sabe?
Sabe Deus o que faz?
Deus dá o pão, não amassa a farinha?
Deus o dá. Deus o leva?
Pertence-lhe o futuro?
Deus te dá saúde? Deus ajuda
a quem cedo madruga?
Será que Deus não dorme?
E é Deus por todos, cada um por si?
Deus consente, mas nem sempre?
Deus perdoa. Deus castiga?
Deus me livra ou salva?
Deus vê o que o Diabo esconde?
De hora a hora Deus melhora?
Mas é se Deus quiser?
E Deus quer?
Deus está em nós? E nós,
responde, estamos nele?
Carlos Drummond de Andrade


Cumpre-se mais um Agosto de verão suficientemente quente para deixar toda a gente de férias, mesmo aqueles que continuaram ao serviço de todos os dias, no mesmo espaço de todos os dias, na mesma empresa de todos os dias, para que em cada dia se acorde com a certeza de que o local de trabalho não entra em deslize e acaba em falência.

Muitas coisas podem acabar em falência antes da moeda europeia e, se ela chegar, acredito de boa fé que não nos apanhe desprevenidos; afinal eu própria me confrontei com os vinténs, os tostões, os centavos, os angolares, os escudos, os contos – um conto de réis, cem mil réis (mérreis, me soava ao ouvido) quinze tostões ou mil e quinhentos, vinte e cinco tostões ou dois e quinhentos. Só depois chegou a nobreza dos cêntimos e dos euros.

Nós habituamo-nos a tudo isto, facilmente voltaríamos ao escudo. Talvez encontrassem um novo nome equivalente, ou talvez não. Um liberto, proporia eu. Talvez finalmente nos libertasse da pobreza crónica, da pobreza de espírito que nos faz subservientes a quem é apenas tanto como nós, que nos faz aspirar a ser os outros, mas nunca ser mais do que os outros por nossa própria iniciativa, dada a modéstia a que nos condenaram.

Isso, um liberto. A exemplo do escravo libertado, culto, fora dos patrícios, digo pois, euros, escusávamos de vender tudo, bancos, companhias de aviação, de electricidade, de televisão, aos dos Santos e quejandos, e ficávamos com a nossa casa, o nosso jardim transformado em horta, os nossos terraços e varandas com vasos de tomates e couves e batatas, uma vaquinha a quem tem quintal e poço ou furo artesiano, em vez dos  cruéis e caríssimos cães poderíamos criar coelhos no apartamento, umas galinhas sempre davam ovos, uns patos numa bacia no terraço… e por aí adiante. Começava por haver menos desocupados, menos desempregados, menos necessidade de moeda sonante. O que era nosso, nosso era, também o ouro das arrecadas antigas.

Talvez então houvesse disposição para esquecer a violência (violência não é só física!) e sobrasse tempo para a educação pura e simples, para o diálogo, para o estudo da nossa História, para o reconhecimento do nosso país bonito, do nosso povo cheio de potencialidades. E quem sabe talvez, talvez pousados em nós finalmente, deixássemos de ser só um povo de tão brandos costumes e voltássemos a ser aquela gente afoita e criadora, de alma navegadora (navegar não é só de barco!) a dar novos mundos ao mundo.

Eu voto pelo liberto, mas não é tempo disso, bem vejo. Afinal foi abolida a escravatura, como a prostituição, tinha-me esquecido do pequeníssimo pormenor.

quarta-feira, agosto 22, 2012

SÚPLICA AOS DEUSES



Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses. 
Fernando Pessoa



Quando eu nascer de novo hei-de ser uma hortênsia e hei-de nascer nos Açores.
Não tem graça ser-se hortênsia e verdejar por aí junto às paredes de uma casa, encostada aos muros de pedra de uma quinta qualquer. Antes crescer sob os choupos à beira de um ribeiro, sempre me parece mais digno, mas verdade verdadinha teria de ser nos Açores, a reflectir-me nas lagoas e a ver de longe o mar. Mas quem diz nos Açores, onde nem sequer estive alguma vez, em qualquer ilha me serve, desde que seja uma ilha não demasiado grande em que possa olhar o mar, espelhar-me em lagoas e rios.

Ser uma planta tem a vantagem de não haver sofrimento por não se poder andar; ser uma hortênsia tem a vantagem de poder ser de várias cores desde o branco ao anil azul rosa esverdeado tudo em mistura numa composição sem igual; e tem finalmente a maior das vantagens, que consiste em não ter opinião e poder estar sempre preciosamente calada. Há poucos dias, numa galeria de pintura, vi um quadro enorme com três homens representando a velha história do macaco de boca e olhos e ouvidos tapados. Um macaco é pelo menos mais divertido: fartei-me de olhar o quadro e não encontrei assim nada de mais profundo do que o óbvio, que me desculpe o artista pela minha inaptidão.

Tão óbvio como a mais recente directiva do prezado senhor ministro da Educação de que 50% - assim mesmo, 50%! - dos alunos devem seguir uma via profissionalizante. Assim, uma directiva emanada do governo tem uma enorme força persuasiva, até parece aquela comunicação que há pouco tempo circulava pela net sobre a necessidade de em Angola se fazer uma manifestação de apoio ao presidente em funções – e os professores que não se apresentassem na mesma, seriam punidos de acordo com a lei.

Eu já era professora quando chegou a Revolução dos Cravos que também estabeleceu que não haveria mais Escolas Industriais nem Comerciais nem Liceus, não haveria mais carpinteiros nem serralheiros nem torneiros nem electricistas porque todos deveriam ser encaminhados para as universidades (isto quando na Alemanha, por exemplo, se apostava nas vias profissionalizantes para assegurar o desenvolvimento da tecnologia e a competitividade das empresas). Assim, por decreto, 100% doutores para sermos todos iguais. Passados que são quase quatro décadas já aprendemos alguma coisa: já ficamos pelos 50%. Parece que não podemos mesmo ser todos iguais, nem os gémeos univitelinos o são. 

Não comento uma resolução que só peca por tardia e pela forma como é decretada. Comento, sim, a dimensão inadequada que toma qualquer decisão no que toca à Educação, onde todos se manifestam opiniosos num país onde reina a iliteracia generalizada. Comento e lamento profundamente que a EDUCAÇÃO deste país não seja de facto um desígnio nacional, na Ciência, nas Artes, no Desporto, na Cultura enfim, que consiga estar acima dos partidos políticos, da economia, dos egos dos ministros que tutelam a pasta.

Não fui pura o suficiente para ser pessoa na próxima encarnação, para apenas mudar de sexo, para descer a cachorro ou gato ou pássaro, menos ainda borboleta. Na próxima encarnação vou ser uma hortênsia, eu vou fazer esse pedido aos céus.