terça-feira, março 18, 2014

DEPOIS DA PALAVRA



"Quando estivermos no poder, retiraremos dos programas educativos todas as matérias que possam perturbar o espírito dos jovens e vamos reduzi-los a crianças obedientes, que amarão os seus soberanos. Em vez de os fazer estudar os clássicos e a história antiga, que contêm mais exemplos maus do que bons, vamos fazê-los estudar os problemas do futuro. Apagaremos da memória dos homens a recordação dos séculos passados, que poderia ser desagradável para nós. Com uma educação metódica, saberemos eliminar os resíduos daquela independência de pensamento da qual nos temos servido para os nossos fins desde há muito tempo... Vamos aplicar uma dupla taxa sobre os livros com menos de trezentas páginas, e estas medidas obrigarão os escritores a publicar obras tão longas que terão poucos leitores. Nós, pelo contrário, publicaremos obras baratas para educar a mente do público. A taxação determinará uma redução da literatura prazenteira, e ninguém que nos deseje atacar com a sua pena encontrará um editor." 
Humberto Eco in «O Cemitério de Praga» 


Muitas vezes me pergunto se o que as pessoas dizem umas às outras em conversas informais é completamente aquilo que sentem, que pensam. A resposta é que não é. Quase nunca é. Mesmo numa roda de amigos mais seleccionada, em que todos se conhecem, e por isso mesmo, há sempre o cuidado de não ferir a susceptibilidade do outro, aquele outro de que conhecemos as raízes e o pensamento nem sempre coincidente com o nosso. Quando avançamos com uma ideia ou proposta contrária tem de ser com passos leves, com a hipocrisia que a educação nos ensinou a vida inteira.

Ninguém se despe por completo diante dos outros, do outro, há sempre uma roupagem levíssima que seja, um alindar de rosto, noutros casos um rasgão de roupa que nem sequer aconteceu. Todos os dias, em múltiplas circunstâncias, me assalta esta pergunta. Quando em roda de uma mesa todos conversam, eu também, a pouco e pouco mais calada até surgir esta pergunta inconveniente cá dentro. É sempre assim, quase sempre assim. A escrita é mais honesta, mais proba, há a possibilidade de contextualizar a mensagem que se quer passar e pode dizer-se tudo.

Hoje falou-se de um programa da TV que não tive oportunidade de ver, versava  o comentário sobre uma obra de arte da Idade Média em que uma mulher era representada com alterações no corpo que indiciavam a enfermidade aterradora que é o cancro da mama. Discutia-se a veracidade desta apreciação, nunca antes encarada como tal. Teria sido intenção do pintor revelar a doença com realismo ou apenas inabilidade do autor da obra?

Não creio. Nem me parece que haja algo a discutir. Desconheço o autor, sugiro apenas que, por ele, ou a verdade (inconveniente para a época) ou simplesmente uma obra inacabada.
 

sábado, março 01, 2014

NÓS E O MUNDO




«É um nome latino, não é? Eu perguntei a meu pai desde quando havia Lispector na Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações anteriores. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e foi formando outra coisa que parece “Lis” e “peito”, em latim. É um nome que quando escrevi meu primeiro livro, Sérgio Milliet (eu era completamente desconhecida, é claro) diz assim: “Essa escritora de nome desagradável, certamente um pseudônimo…”. Não era, era meu nome mesmo.»


Clarice Lispector




O canto magnífico da primavera impõe-se ao rigor de um inverno desusadamente tempestuoso, inverno a sério a lembrar outros rigores já de si tão penosos que ensombram vidas e destroem laços, que deixam marcas fundas sem remissão.

Mas o planeta gira e o mundo avança, o alarido dos pardais está ai a aproveitar as réstias de sol que conseguem escapulir por entre as nuvens de cenho carregado, um sopro morno que vem pontear de rosa o pessegueiro, vestir de branco a ameixoeira, os jacintos subindo garbosos do chão onde dormiram desde o verão.

Há odores que pairam, se desprendem por antecipação das cerejas que hão-de surgir deste branco intempestivo que assim profana a sisudez do tronco aparentemente envelhecido.

Parece que hoje já é Carnaval. Parece que o sol vai deixar que o povo saia pelas ruas disfarçado de si, soltando os espíritos à boa maneira dos antigos e dos ditos incivilizados, a expurgar em danças e sons o que já não cabe dentro, a zombar dos cabeçudos que não se compadecem das dores alheias.

Com certeza os dias já nos dão mais horas de luz, com certeza a temperatura vai subir uns poucos graus, com certeza a vida vai continuar a fluir, depois do Carnaval, depois da Troika, depois das Coligações, das Eleições.

Sem certezas, o mundo na ponta da Europa, o mundo tão injusto, um mundo cada vez mais insano, o mundo tão perto, franze também ele o sobrolho e estremece ainda mais a Natureza.