terça-feira, dezembro 16, 2014

NOVOS TEMPOS

      Silêncio. Mais silêncio. A resposta, dura, foi um soco: 
      - Também morreu. Era minha mãe!
      Aquele bruto, o seu filho... O golpe aniquilou a derradeira coragem do brasileiro. Um agónico espasmo de terror paralisou-lhe o corpo todo, embora sentisse o arcaboiço abalado pelas pancadas do coração. De súbito, porém, como se lhe tivessem dado corda, um redemoinho dos sentidos arrastou-o para o ar livre. Saindo quase a correr, tropeçou na pedra alta da soleira. E, já se afastara uns trinta passos da porta da casa paterna, quando se lembrou, por fim, de que era um homem importante e abastado. Deteve-se, a ofegar. E, tirando atabalhoadamente a gorda carteira do bolso, escolheu nela, a toda a pressa, do dinheiro que a enchia, dez contos de réis. Voltando depois atrás, no seu passo miudinho, a cambalear sobre o xisto, entrou de novo na toca onde viera ao mundo. E, sorrateiramente, foi poisar o dinheiro sobre a arca. Sem que o filho e a mãe, sempre em frente do lume, se voltassem para ele. O rapazio, porém, não perdendo de vista nem um só dos gestos do brasileiro, e encantado com o aspecto burlesco daquele corpanzil mal jeitoso aos tropeções rua fora, soltou em uníssono uma gargalhada muito fresca que foi despedaçar o silêncio majestoso do crepúsculo.

Mário Braga, "Serranos"



Pela mão de Mário Braga - certamente o único neo-realista vivo da geração da Vértice, a revista de que foi editor por cerca de vinte anos - percorri de novo as serranias do interior norte do país, esses lugares fascinantes (de pura ficção, no meu entender dessa época) para mim, desde que encontrei "O Malhadinhas" de Mestre Aquilino e as suas "Terras do Demo". 

Mário Braga tem contos admiráveis em "Serranos", onde relata a rusticidade dos homens e mulheres talhados à medida das terras em que nasceram, numa simplicidade de escrita porém incisiva, que não lhe retira suavidade e delicadeza na descrição dos lugares e das gentes. Observador atento e sensível da realidade urbana em "Nevoeiro e Caminhos sem Sol", assalta-me com essa leitura uma sensação constrangedora da sua actualidade.

Portugal do século XXI aparece em contornos de há um século atrás, a pobreza a espreitar, a incultura das gentes a encontrar os caminhos antigos de subserviência, as mulheres acossadas pelos empregadores, impedidas de procriar para não perderem os lugares de magros salários, outras pelas estradas entregues à prostituição; é a violência em todas as frentes, na intimidade dos lares, nas instituições, violações e assassínios inconcebíveis num país que se diz - que se quer - democrático, os direitos espezinhados pelos que dominam com o poder do dinheiro.

Os mais cultos, os mais capazes, os mais jovens, abandonam os mais velhos, e aos mais velhos, o país que sonharam conquistar - onde parece medrar a ignorância e a fome, o desespero - impotentes para garantirem um futuro promissor, mendigando o sucesso longe das suas raízes.

O mundo não vai acabar, apenas vai ser diferente. A televisão, a internet, os drones, este crescimento das tecnologias, acontece em progressão geométrica e, consequentemente, a uma velocidade que muito poucos conseguem acompanhar de forma a aceitar as novas normas de valores, lesivas do sentimento mais profundo de tolerância e compaixão. As religiões de Abraão não cumpriram as normas, aproveitaram-se delas, desde há muito adulterando os seus princípios fundamentais. 

O mundo vai continuar, mau grado os Jeronimus Bosch do terceiro milénio cristão.


1 comentário:

Manuel Veiga disse...

belo e sentido texto...
um quadro bem real

esperemos que as novas gerações tenham aprendido alguma coisa com nosso erros.

beijo