Silêncio. Mais silêncio. A resposta, dura, foi um soco:
- Também morreu. Era minha mãe!
Aquele
bruto, o seu filho... O golpe aniquilou a derradeira coragem do
brasileiro. Um agónico espasmo de terror paralisou-lhe o corpo todo,
embora sentisse o arcaboiço abalado pelas pancadas do coração. De
súbito, porém, como se lhe tivessem dado corda, um redemoinho dos
sentidos arrastou-o para o ar livre. Saindo quase a correr, tropeçou na
pedra alta da soleira. E, já se afastara uns trinta passos da porta da
casa paterna, quando se lembrou, por fim, de que era um homem importante
e abastado. Deteve-se, a ofegar. E, tirando atabalhoadamente a gorda
carteira do bolso, escolheu nela, a toda a pressa, do dinheiro que a
enchia, dez contos de réis. Voltando depois atrás, no seu passo
miudinho, a cambalear sobre o xisto, entrou de novo na toca onde viera
ao mundo. E, sorrateiramente, foi poisar o dinheiro sobre a arca. Sem
que o filho e a mãe, sempre em frente do lume, se voltassem para ele. O
rapazio, porém, não perdendo de vista nem um só dos gestos do
brasileiro, e encantado com o aspecto burlesco daquele corpanzil mal
jeitoso aos tropeções rua fora, soltou em uníssono uma gargalhada muito
fresca que foi despedaçar o silêncio majestoso do crepúsculo.
Mário Braga, "Serranos"
Pela
mão de Mário Braga - certamente o único neo-realista vivo da geração da
Vértice, a revista de que foi editor por cerca de vinte anos - percorri
de novo as serranias do interior norte do país, esses lugares
fascinantes (de pura ficção, no meu entender dessa época) para mim,
desde que encontrei "O Malhadinhas" de Mestre Aquilino e as suas "Terras
do Demo".
Mário
Braga tem contos admiráveis em "Serranos", onde relata a rusticidade
dos homens e mulheres talhados à medida das terras em que nasceram, numa
simplicidade de escrita porém incisiva, que não lhe retira suavidade e
delicadeza na descrição dos lugares e das gentes. Observador
atento e sensível da realidade urbana em "Nevoeiro e Caminhos sem Sol",
assalta-me com essa leitura uma sensação constrangedora da sua
actualidade.
Portugal
do século XXI aparece em contornos de há um século atrás, a pobreza a
espreitar, a incultura das gentes a encontrar os caminhos antigos de
subserviência, as mulheres acossadas pelos empregadores, impedidas de
procriar para não perderem os lugares de magros salários, outras pelas
estradas entregues à prostituição; é a violência em todas as frentes, na
intimidade dos lares, nas instituições, violações e assassínios
inconcebíveis num país que se diz - que se quer - democrático, os
direitos espezinhados pelos que dominam com o poder do dinheiro.
Os
mais cultos, os mais capazes, os mais jovens, abandonam os mais velhos,
e aos mais velhos, o país que sonharam conquistar - onde parece medrar a
ignorância e a fome, o desespero - impotentes para garantirem um futuro
promissor, mendigando o sucesso longe das suas raízes.
O
mundo não vai acabar, apenas vai ser diferente. A televisão, a
internet, os drones, este crescimento das tecnologias, acontece em
progressão geométrica e, consequentemente, a uma velocidade que muito
poucos conseguem acompanhar de forma a aceitar as novas normas de
valores, lesivas do sentimento mais profundo de tolerância e compaixão.
As religiões de Abraão não cumpriram as normas, aproveitaram-se delas,
desde há muito adulterando os seus princípios fundamentais.
O mundo vai continuar, mau grado os Jeronimus Bosch do terceiro milénio cristão.
1 comentário:
belo e sentido texto...
um quadro bem real
esperemos que as novas gerações tenham aprendido alguma coisa com nosso erros.
beijo
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