terça-feira, março 17, 2009

Oportunidades


Bulia perto um corgozinho, e nele e nos frutos selvagens se foi restaurar. Não sentiu em redondo frauta de zagal, nem ferra de estorgador. Pois logo na manhã do segundo dia, vieram aves de todas as bandas, o carriço bonifrate, o pardal travesso e chalreador, a calhandra perluxosa, o tejasmo monástico, o pintassilgo mestre de solfa, toda a voz musical daqueles bosques, toda a asa daquele céu, e poisando sobre a cabana, cantando, pareceu a Gonçalo que com ele rezavam laudes à Virgem Mãe. E porque não haviam de ser anjos encarnados nos seres bonitos da terra? Em prova real do milagre, a todo o âmbito, nos lesins da fraga e na toalha de areia, cresceu a relva e desabrochou um jardim que nem que Maio tivesse chegado ali da terra gorda da promissão.

Aquilino Ribeiro



Retomo o leme da nau à deriva, que sem ela meus caminhos se desvanecem. Navegar é preciso, disse o poeta. Viver, nem sempre. Porque nem sempre a vida acontece para gáudio dos deuses, nem sempre a vida é suficiente para justificar a vida.

Há os fundos de glória, os prazeres da memória e o canto dos pássaros em cada esplendor de primavera. E há assomos de histórias cansadas que dormem no fundo de cada rosto cortado de rugas, do tempo, do momento, do sentimento. E há as vozes que debitam as palavras. Para além do sentido coordenado delas, há o tom que repassa e não mente, onde transparece a vibração da existência. Nem é preciso um olhar ou sequer a presença, basta o timbre para medir a pulsação da vida. Como as madrugadas acordam já fogosas de sons, como os dias pousam generosos de azul, o planeta roçando o equinócio.

A crise sobe de tom mas o sol adormece os dias de desespero, ergue-se o tempo das colheitas onde vai sobrando para quem não semeou; é a compensação dos grandes, dos intermediários, dos que não sujaram as mãos na terra. É o tempo dos melros que fazem pela vida, nem sei que sentido menos belo possa ter o animal de minha tão grande simpatia. Mas tem. E há muito melro por aí. Dizem. Que eu só conheço o casal que frequenta os meus campos, ele tem um bico amarelo e atrevido, ela é menos atraente; mas ambos têm o tal negro, brilhante e luzidio tom de que falou o vate.



5 comentários:

Paula Raposo disse...

Excelente o tue post! As palavras de Aquilino e as tuas.
Muito melro...beijos para ti.

dona tela disse...

Ah a Dona Jawaa fala da crise... Também eu, assim a propósito do Titanic.

Muito boas tardes

Manuel Veiga disse...

permite que te corrija - não serão melros, mas antes milhafres...

os melros moram noutras paragens: no teu jardim. p. exemplo...

o teu texto - belo e inteligente!...

beijos

M. disse...

Uma beleza, Jawaa!

bettips disse...

Navegar... mas à vista dos entes queridos. Entre eles um melro - que não "dos outros" - que cante bom dia e enleie "a crise" em seu saltitar.