quinta-feira, junho 15, 2006

China



«O filho do caseiro novo é que lhe fez aquilo. Devagar, muito devagarinho, chegou-se a ele e – zás!: espetou-lhe a estaca nas costas. Depois ergueu-o e, de barriga para ao ar, deixou-o ali suspenso, a espernear ao sol.

O menino era mau de natureza. Furava os olhos dos passarinhos e cortava as pernas aos saltaricos quando podia. Mas, no caso de Bambo, portou-se assim porque a Joana Angélica lhe encheu primeiro os ouvidos. À noite, na fiada, tanto disse e ladrou dos sapos, do coxo e das feitiçarias que o pequeno, pela manhã, mal deu com Bambo na horta, varou-o de lado a lado. E o pobre não teve outro remédio senão morrer trespassado na ponta do pau, a servir de espantalho às lavandiscas.»
Miguel Torga

No cacimbo os dias caminhavam sob um céu sem nuvens. O sol escrevia naquele um arco ligeiramente mais baixo, não esquentava as sombras, não aquecia as noites. Era o tempo do milho, das queimadas, das férias, dos passeios e piqueniques pelos arredores.

A época das chuvas trazia outras tarefas ao quotidiano da fazenda. O gado pastava gostosamente durante o dia, pastores bem atentos às nakas de milho para que o gado não apetecesse o seu verde mimoso e pujante. Pelo fim da tarde era o regresso a casa e o complemento habitual de enormes colheradas de sal espalhado ao longo do estreito caminho do rio. Não acontecia todos os dias, funcionava como a guloseima esperada, porque os animais corriam para ele e lambiam deliciados as pequeninas pedras brancas no chão térreo.

Só depois recolhiam aos currais, feitos de troncos grossos de árvore, bem encostados uns aos outros, de altura suficiente para que de fora apenas pudessem aparecer algumas pontas. No período forte das chuvas, era necessário mudá-los frequentemente, aproveitando sempre um dos lados dos mesmos, para facilitar a tarefa que tinha de concretizar-se durante as horas de ausência do gado no pasto.

Quando as vacas pariam, ficavam uma semana fora do curral para protecção dos vitelos. Muito raramente, acontecia uma vaca recusar-se a alimentar a cria porque tinha os úberes excessivamente cheios, sentindo dor. Era necessário forçar a sucção e, durante uma ou duas noites, deixava-se o animal amarrado a uma árvore pelos chifres, de modo a que não pudesse afastar de si a cria.

Recordo como se fosse hoje a inquietação que se gerou numas pequenas férias em que, vezes seguidas, apareciam mortas, e só parcialmente comidas, as crias que ficavam de fora. Seguiram-se pegadas, fizeram-se esperas, leão não era, talvez uma chita, hiena não podia ser, a chuva contínua retirava nitidez ao rasto. Mas os casos repetiam-se uma e outra vez. Nada.

As aulas obrigaram ao regresso à cidade e esqueci o assunto. Era na altura nosso cozinheiro o Massumba, que costumava ensinar-me o umbundo que nunca aprendi. Ficaram-me os cantares sobre a ervinha sensitiva que crescia com as primeiras chuvas e que toda se fechava ao toque da nossa mão: Sô uafa, nhô uafa, ô lirè éri é? - o teu pai morreu, a tua mãe morreu, por quem choras tu?

O Massumba tratava-me por Ca sinhora catito (a senhora pequena) e era meu amigo. Foi ele quem me trouxe um dia, de uma queimada, um raposinho que a mãe, na fuga, deixara cair da boca e que tinha poucos dias. Criei-o a biberon e ficou um lindo bicho, o Pocky. Só que em casa todos tinham medo dele, até os criados, e o meu pai forçou-me a entregá-lo ao Jardim Zoológico onde havia outros companheiros, pois em casa teria de permanecer acorrentado.


Ambos havíamos criado também um cão pastor cuja mãe tinha morrido atropelada. O China foi o meu grande companheiro da infância, como ele não voltei a ter nenhum, mas como ficou de grande porte, acabou por permanecer definitivamente na fazenda. Grande, adulto, eventualmente revoltado por se ver afastado longos períodos de quem o havia criado, tornou-se a «fera» que desfazia os vitelos pela calada da noite.

Bem mais tarde tive a terrível notícia. Meu pai abatera a tiro o meu amigo. Ter-lhe-ei perdoado alguma vez?

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