quinta-feira, maio 18, 2006

Camboiola, o pastor


Enfrenta com muita força a morada terrestre;
Mesmo que todas as coisas se ergam contra ti,
Enfrenta-as com muita força.
Guarda-me no teu coração


Poemas ameríndios (trad. Herberto Hélder)




Camboiola era o pastor dos bois, o mais antigo da casa. Seria velho, mas não é essa a ideia que me ficou dele. Sempre enfeitado com bordados nas roupas que vestia, vinha frequentemente, ao fim do dia, junto de minha mãe mostrar os pontos que inventava e levar mais linhas. Tudo lhe servia: grossas, finas, muito, pouco, de preferência bem coloridas, o que era preciso, era matar o tempo do pasto. Usava uns cintos muito bordados e coloridos, aos domingos envergava um casaco de galões a que ele acrescentava mais cor, era um daqueles casacos que se vendiam das roupas de fardo que eram importados da América, teria pertencido a um militar. Dias, semanas, meses, anos, o Camboiola tinha com ele o gado mais escolhido, era o pastor mais atento, sabia das doenças que chegavam, do tempo em que as vacas iam parir, dos garrotes que era preciso tranferir para o outro pastor, o Catiavala.

Lá para Setembro, com as primeiras chuvas, o Camboiola trazia tortulhos, enormes, carnudos - o Kema - que era óptimo para assar na brasa e comer temperado com azeite, vinagre e pimenta. Outros, ainda em bola fechada, para guisar com galinha, muito tomate e gindungo. Pirão de farinha de milho a acompanhar. Uma delícia.

Pouco apreciadora que sempre fui de comida, é agora que mais recordo estas coisas, não sei se pelos “enta”, se pela saudade que me rói. Bifinhos de tchissóvio na brasa, com kema grelhado e batata nova cozida. Ementa para ser levada à televisão como verdadeiramente regional, duma província que foi portuguesa em África. Nós, os Portugueses, sempre fomos uns poetas: em Angola, sempre o desejo da Metrópole, sinónimo de civilização, cultura, pureza de língua… trinta anos depois, o hábito não chegou para ser monge.

A poesia, essa, ficou. Mais a saudade, palavra bonita entre as bonitas do português. Só por isso valeu a pena nascer portuguesa. Só a alma de português de hoje não chegou para manter vivo o desejo da cultura dos povos que dominou durante centenas de anos. Quem para ensinar a língua portuguesa aos angolanos, quem? É o fogo que deve manter-se aceso, é o sinal da cultura que lá deve ficar, mas nem isso fomos capazes de fazer. Desenvolver a nossa cultura, projectá-la e desenvolvê-la em paralelo com os povos que estão abertos a isso e que connosco partilharam tanto, não. É mais fácil deixarmo-nos curvar pela Europa e virar costas às nossas gentes que tudo nos pedem. Será que não vêem que para estes somos importantes e para aquela somos importunos? Os pés fincados na Europa, sim, mas o corpo virado para diante, para o mar! Qualquer dia já nem poesia temos...

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