sábado, maio 13, 2006

Tons de Matisse

«A novidade, a sua enorme ousadia, nunca houvera uma mulher médica na Madeira, empolgou os dois Vaz de Lacerda, vencendo mesmo as masculinas reticências de André. As criadas, pasmadas, comentavam entre si, em voz baixa, o espanto de uma menina solteira, bem-educada e de boas famílias, pensar em estudar coisas tão impróprias, tão feias, ver todas as partes do corpo, gente nua, até!

Correndo, correndo, a novidade deu a volta à Praça da Constituição, abafou os tímbalos, os tambores e os clarinetes e regressou ao pequeno grupo que abordava, agora, mais calmamente, a dificuldade das matérias do primeiro ano. Quem lhes apareceu com os ecos do escândalo foi o cónego Nicolau Villa, alto, robusto e escuro como um mouro. Benedita imaginava assim, embora muito mais jovem, o Othelo de Shakespeare. O cónego curvou-se diante de Benedita com a elegância mundana que a entrada tardia para o seminário não lograra anular e que os anos não quebravam: “Prima Sra. D. Benedita como está? Notícias dos pais? E os seus estudos, André?” E virando para Catarina Isabel o seu olhar penetrante: “Então, senhora D. Catarina, matriculou-se em Medicina? Os meus parabéns. Já vai sendo tempo de as mulheres serem tratadas por mulheres.”»
Helena Marques
E vai sendo tempo de olhar e respeitar os animais, não só porque eles são animais, mas, principalmente, porque nós também o somos. E compreendê-los. E partilhar com eles as suas brincadeiras, dedicação, alegrias e tristezas, interrogações também.

Num fim de manhã, eu havia subido aos quartos e sentei-me na cama a ler o final do livro «O Último Cais» de Helena Marques. Embrenhada com as personagens pela Ilha da Madeira, mal dei pela subida do bichinho que habitualmente me acompanha pela casa. Mas desta vez estava inquieto. Não lhe prestei atenção e passarinhou pelo quarto com as patinhas a matraquearem na madeira do chão, depois parou. Como me visse impávida, resolveu lançar um leve «huuum…», e desviei a atenção do livro para ele.

«O que foi?» Perguntei. O cãozito, que não tem mais de um palmo de altura, estava no tapete de pé, parado, a olhar para mim. Quis regressar ao livro, mas ele, inconformado, repetiu o chamado mais prolongadamente. Arreliada com a insistência, voltei de novo a minha atenção para ele e fui ralhando: «Mas o que é agora? O que quer sua excelência afinal?»

Então correu para as minhas pernas, puxando-me as calças e rosnando, como faz habitualmente quando está muito excitado e quer partilhar a sua alegria. Levantei-me, voltei a perguntar o que queria e ele começou a descer as escadas, parando para que eu o seguisse, o que fiz, claro. Levou-me até à cozinha, depois ao quintal e desceu as escadas para cave. Só aí ele ergueu a cabeça para o céu.
Fiquei estupefacta! Os beirais estavam pejados de andorinhas que chilreavam e lutavam por um espaço para descansar àquela sombra ainda estreita.

Voltou a subir as escadas, corria e olhava para eles e para mim como quem espera uma resposta.

— São passarinhos, Matisse, são passarinhos que trazem a Primavera!
As andorinhas estavam de passagem, em migração para locais mais acolhedores decerto, pois no fim do dia desapareceram como tinham surgido.

Que pena! Que pena não alegrarem sempre esta casa com os seus chilreios!

3 comentários:

Anónimo disse...

Tão bonito!
O texto e o Matisse.
E para a dona que é um amor um beijinho grande da sua "amiguinha secreta"

jawaa disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
jawaa disse...

Coisa lindas me vêm do planalto... que bom ter gostado da carta de meu pai! Obrigada, mas não exagere nos mimos, que o amigo não me fica atrás na escrita de coisas tolas como as que às vezes aqui expressamos...
Beijinhos para si, aí para casa tbém.
Às minhas duas fãs um xi-coração (não é assim que se escreve mas é assim que eu acho bonito).
Obrigada, sempre.

PS - Fui eu que removi o comentário acima pq saiu «bigada» em vez de obrigada e eu não sei emendar.