quinta-feira, abril 17, 2014

GOSTO DE JOGAR




Não, Pedro: aí é que nós pensamos e sentimos de forma realmente diferente. Tenho medo de uma coisa que tu não temes: que, depois de conhecer a liberdade, depois de ter viajado e vivido em países livres, não me volte a habituar a viver de outra maneira. Tenho medo que a liberdade se torne um vício, enquanto que agora é apenas uma saudade.
Miguel Sousa Tavares, in "O Rio das Flores"






Minha mãe não gostava de jogar às cartas. Talvez não gostasse de perder, não soubesse perder, como nunca aceitou perder o seu filho estremecido.


Meu pai dizia que fazia bem jogar porque se aprendia a perder. Lá está. Eu recordo os serões na fazenda, minha mãe fazendo um crochet qualquer, uma renda em volta de um pedaço de pano para colocar na cesta do pão. Jogávamos à sueca, meu pai sempre meu parceiro, meu irmão com a tia Mariazinha ou com o primo Timóteo que tomava conta da fazenda, depois de levantada a mesa do jantar. Não era canasta, como jogavam as amigas de minha mãe, tão pouco king, menos ainda bridge como os senhores bem. Com o meu irmão jogava ao crapaud, ou à bisca de nove, quando éramos vários miúdos jogávamos ao burro em pé. Aprendia-se a fazer contas de cabeça, era ver quem contava mais depressa no fim dos jogos.


Mas estes pedaços de saudade que constam no fundo das memórias vieram a propósito de perder qualquer coisa. E ninguém gosta de perder, convenhamos. Ninguém gosta de perder principalmente os entes queridos, os amigos, até os apenas conhecidos do cinema, da TV, dos livros, aqueles a quem nunca dirigimos a palavra mas que nos marcaram por algum motivo.


Só estes são perdas de facto, tudo o resto não tem a mínima importância. A vida ensinou-me a olhar pare dentro de mim com alguma lucidez e dei conta de que afinal nunca perdi nada. De todos os que se foram e de quem sinto saudade, sinto-a precisamente porque todos pincelaram a minha vida de algum modo, deram  cor e vida e alma ao quadro que sou. Tenho a certeza de que ninguém pegou no pincel em vão – as cores que se perderam correspondem àquilo que, decididamente, não me ajuda a viver.




2 comentários:

M. disse...

Vou-te lendo em silêncio. Com prazer.

Manuel Veiga disse...

um jogo que vamos perdendo - em cada lance da vida...

crochet de palavras belas. onde se pressente o latejar dos afectos ...

beijo