terça-feira, maio 09, 2006

Descontinuidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei-de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive)
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes



Eu não sinto dor. Hoje não sinto dor e não há qualquer razão para me sentir infeliz; quando muito, desinfeliz. Dizem as boas regras que duas negativas dão resultado positivo, quer na área da matemática, quer no que toca à linguística (nem sempre), à história das palavras, ao jogo que nos leva a dizer coisas aparentemente incoerentes. Por que não descoerentes? Se quisermos, poderemos encontrar diferenças entre estes dois aparentes sinónimos, um deles ainda não registado nos nossos dicionários. Incoerente é certamente todo aquele que não se rege seguidamente por determinado comportamento que levaria os outros que o acompanham nas suas ideias a esperar um registo que não acontece em determinado momento. Mas de seguida ele retoma a sua coerência. Numa altura determinada ele foi incoerente e regista-se o facto.
Ser descoerente é cortar repentinamente com a ligação que percorre o pensamento de alguém e nunca mais retomar o fio de Ariadne, é abandoná-la na ilha. E não porque se esqueceu, apenas porque a sua descoerência assim o determinou.

Anos oitenta. Tarde invernosa de Novembro, escura de nevoeiro que entristece a aldeia, enevoa o espírito e desliga-o de tudo o que é real.
- Já bacoraste, mãe!
- Claro. Não consigo perceber o que se passa com este parvo deste gravador... ou comigo, sei lá!
- Pois é, mãe, não tens vida p'ra isto...
- Meu filho, por favor, não vais sair com esse casaco vestido, pois não?
Sorriso jovem, de filho. Piscadela de olho ao companheiro ali ao lado, à espera. Corrige a posição dos botões do gravador, volta-se. Já está. Compõe-se. Agora os botões do casaco.
- Olha só, não fica baril? Assim velho e surrado é que tem requinte...! Tchau, está quase a to... caaaaaaaaaaaaaaaa… r.......
Outra vez frio. Escuro. Silêncio...

...Queevè...è...è! Ei, Minina Queevè!

Olhos de espanto. Interrogação. Algazarra lá fora.
- Patrão matou jacaré. É...é. Anda ver!
- Mentira...
- É...é. Verdade mesmo! Corre!
Chegada arquejante junto ao círculo onde confluíam todos na redondeza: cozinheiro, lavadeira, criados, serventes, mulheres, garotos. O João e eu, claro.
- O'ngando inê...ê...êne!
- Haca!
- Hum...hu. Avôiô...ô..!
Meu pai sorria, satisfeito, a língua a brincar com o capim seco na boca. Botas altas enlameadas, rosto afogueado, cabelo colado à testa. Mas ar de festa.
E festa foi. Para todos. Carne branca de réptil, manjar de deuses para os indígenas. Para recordação, um cheiro que durante três dias empestou tudo em redor. Pestilento e nauseabundo.

E a pele. É verdade, tenho de não me esquecer de a estender ao sol, quando o houver. Com esta humidade toda, enche-se de bolor.
Veio, foi, voltou. E aqui está intacta. Desafiando tudo, enrolando tudo o que sobra das vidas que ficaram, no seu rolo escuro dentro do papel pardo, no armário húmido.
O que eu quero lembrar, só o que eu quero lembrar...

1 comentário:

Anónimo disse...

Mãe, que bonito!quando eu for grande quero ser como tu.