segunda-feira, agosto 07, 2006

Sensações

«Nadas na sombra de uma grande ausência.

Cobrem-te os vidros do espanto
Fragmentos de ardidos instantes,
O peso da água incendiada.
Imaginas então o ressoar
De uns pés infantis
Na fotografia mais distante
Do teu nome.

Sabes então que só na terra
Onde escondes o coração
Correrás por entre as palmeiras
E o eco dos primeiros rios.»

Eduardo Bettencourt Pinto

O que hoje tenho a meus pés é tudo aquilo que, naquele tempo, desejei ver. Por isso tem para mim um sabor que os outros não provam.

Eu nunca soube desenhar. Ou talvez, como a Saint-Exupéry, me tivessem convencido de que não sabia desenhar. Muito menos cubatas, montanhas áridas, imbondeiros, palmeiras ou cafezeiros. Na escola primária, a Menina Mª Amália fazia no quadro uma paisagem bonita com montes e vales, um moinho lá no alto com um caminho em zig-zag, uma menina a tocar um burrinho a carregar farinha, mais um pastor e ovelhinhas na encosta. Eu aprendi a fazer assim as paisagens. As da minha terra não desenhei, porém vivi-as, e isso, ninguém me tira.

Hoje fico ainda deslumbrada com estes pinhais que se erguem da encosta abaixo de mim e sobem até ao azul mais pardacento do que o meu. Vetustos pinheiros ainda não violados pela mão do homem, que os não respeita e dilacera sem piedade, para lhes tirar o sangue da vida. Os barquinhos ancorados ainda cobertos pela manhã, ou de vela ao vento, ou rebocando esquiadores; crianças mergulhando e chapinhando, gente nas plataformas gozando os prazeres do sol. Mas de noite, na quietude do escuro, há pouca vida. Só o ruído dos motores a sugar a água ou o ressoar do vento nos pinhais quando há nortada. Piou um mocho mas eu não ouvi.

O anoitecer em Angola acordava um mundo louco de sons que eu nunca mais vou escutar. O coaxar das rãs servia de coro a um sem fim de ruídos que não sabia identificar, para além dos noitibós que faziam crém-crém, crém-crém... Eu fui sempre medrosa sem saber concretamente porquê, pura insegurança. E era sem dúvida uma questão psicológica, porque meu pai me ensinou que estar no escuro é estar protegida, ser mais forte: ninguém nos vê e, se nós estivermos atentos, com todos os sentidos alerta, podemos observar tudo em redor.

Em Angola escurecia cedo; a diferença no tamanho dos dias ao longo do ano era mínima. Assim, às vezes, era preciso ir à horta, na fazenda, já noite, que meu pai gostava de ir apanhar grelos para o seu jantar e metê-los na panela sem sequer os lavar «para lhes não tirar o sabor» e, se eu ia com ele, queria sempre levar a lanterna acesa. Era nessas alturas que ele me dava conselhos que me aquietavam, porque me convidava a olhar para longe, até à senzala, à mata e ao rio, e me fazia compreender que, se eu tivesse o mais pequeno foco aceso junto a mim, era eu própria que passaria a ser o alvo para muitas léguas em redor. A verdade é que ainda hoje me sinto segura no escuro, afinal é qualquer coisa que nos ficou dos nossos antepassados, que meu pai reaprendeu no contacto da sua solidão com os homens da selva, com os animais, com a natureza...

Mas esta quietude faz-me medo. O vento nos pinhais a crescer, a ressoar mais e mais forte e depois a afastar-se ao longe, inquieta-me.


1 comentário:

naturalissima disse...

Amiga, mas que bela história!
Embora tenha sido diferente as experiências, as vivências são muito parecidas, pois nasci e vivi até aos meus 24 anos em Moçambique.
Gostei muito de ler este pedaço de ti.
Só isto te leva a ser o que és hoje! Uma mulher mais corajosa, mais rica na sua essencia, mais humana, mais bela.

Um grande beijinho
Daniela