sexta-feira, agosto 04, 2006

Angústia

Hoje limito-me a copiar uma transcrição de http://lecumedesjours.blogspot.com , de 25.07.06.
Sem comentários.

(…)Nos primeiros dias do ano escolar, acontece-me pedir aos meus alunos que me descrevam uma biblioteca. Não uma biblioteca municipal, não, o móvel, aquele onde arrumo os meus livros. E o que eles me descrevem é um muro. Uma falésia de saber, rigorosamente ordenada, absolutamente impenetrável, uma parede contra a qual apenas podemos debater-nos.


- E um leitor? Descrevam-me um leitor.
- Um verdadeiro leitor?
- Se quiserem, embora não saiba a que chamam um verdadeiro leitor.


Os mais respeitosos descrevem-me Deus, o próprio Pai, uma espécie de eremita antediluviano, eternamente sentado numa montanha de livros cujos significados ele bebera até à total compreensão de todas as coisas. Outros esquissam-me o retrato de um autista profundo, de tal forma absorvido pelos livros que embate contra todas as portas da vida. Outros ainda oferecem-me um retrato côncavo, desatando a enumerar tudo o que um leitor não é: não é um desportista, não é vivaz, não é divertido, não gosta nem de comida, nem de roupas, nem de carros, nem de televisão, nem de música, nem de ter amigos… e por fim outros, mais estrategas, erguem diante do professor a estátua académica do leitor consciente dos meios postos à sua disposição pelos livros e que lhe permitem aumentar o seu saber e aguçar a sua lucidez. Alguns misturam estes diferentes registos, mas nem um só, nem um só se descreve a si próprio, ou a um membro da sua família ou um desses incontáveis leitores com que se cruzam todos os dias no metro.

E quando lhes peço que me descrevam “um livro” é um OVNI que vejo posar na sala de aula: objecto ó de tal forma misterioso, praticamente indescritível dada a inquietante simplicidade das suas formas e a proliferante multiplicidade das suas funções, um “corpo estranho”, carregado com todos os poderes e com todos os perigos, objecto sagrado, infinitamente protegido e respeitado, arrumado com gestos oficiosos nas estantes de uma biblioteca impecável, para ali ser venerado por uma seita de adoradores cujo olhar é enigmático.(…)”

Daniel Pennac, “Como um Romance”
Editado em português pela ASA.

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