quarta-feira, dezembro 05, 2007

A Máquina



«E o jantar veio para a mesa; rompeu a agradável orquestra de garfos e facas, para muito boa gente mais harmoniosa que as melhores partituras de Bellini ou Donizetti; e todos empreendemos, como aliados, numa batalha, cujos destinos não podiam ser duvidosos.

O médico e o abade, esqueceram por um pouco a recíproca antipatia; contudo esta afabilidade diminuía na razão directa do apetite. À sopa, eram quase amigos, ao cozido, tolerantes apenas; mas quando chegou o prato de meio, já os primeiros assomos de hostilidade começavam a transparecer. Um frango guisado foi o pomo da discórdia.»

Júlio Dinis


Fascinam-me as máquinas, por simples que sejam.

Havia dantes, em casa de meus pais, enormes fogões a lenha que eu admirava. Havia um na fazenda e um outro enorme na cidade. A minha cidade. E era tão grande e pesado que, quando mudámos para a casa nova, ele não foi para a cozinha. Talvez porque não coubesse, talvez porque não se coadunasse com a decoração, mas principalmente para que não fumasse na casa, escurecendo as paredes.

Então foi preciso construir para ele um alpendre no quintal, por trás dos anexos. Tudo porque não se passava sem aquela máquina multifuncional, de forma alguma substituível por um moderníssimo fogão a gás de quatro bocas embora a meio com uma placa para grelhados. Este ficava bem na cozinha, pouco mais que para enfeitar, uma ou outra vez experimentar um bolo no forno.

O Cozinheiro era um maquinista atento e cuidadoso. Pela manhã cedo o acendia, como eu hoje ligo o computador. Era todo em ferro escuro, com as bocas tapadas por discos que se tiravam (ou não, porque o central tinha um buraco onde cabia um dedo), consoante fosse preciso mais ou menos calor, de acordo também com o tamanho da panela a aquecer. Os discos sobrepunham-se perfeitamente uns sobre os outros. Na frente, uma barra grossa de metal reluzia a toda a largura, à força de solarine, tal como a torneira pequena de uma só haste, que só deitava a água da caldeira de cobre quando em posição vertical à face do fogão. Posicionava-se à esquerda, pois que à direita havia o forno, com um tabuleiro a meio, e, abaixo dele ainda um espaço para guardar as travessas sem deixar arrefecer a comida. Ao centro o fogueirão, onde entravam os toros de lenha logo trancados pela porta de aldraba, como todas as outras, com punhos enegrecidos, que só brilhavam em dias de grande limpeza.

Aquela máquina era a força da casa, o seu arrimo.

Fervia o leite para os meninos, logo cedo, aquecia a água para o café e para o jarro nas manhãs frias de cacimbo, iniciava o ritual da sopa, preparava as refeições da casa, cozia os bolos, grelhava os bifes de caça na chapa. Fazia a goiabada e o doce de loengo. Cedia as brasas para o ferro de engomar a roupa, fazia a comida dos cães. Pela tarde ainda se aproveitava dele a cinza para arear as panelas e os talheres de alpaca. E para estrumar a horta.

Naquele alpendre das traseiras, batia o coração da casa. O ruído das conversas que eu não entendia, as risadas, os cheiros, os sabores dos fritos de canela e açúcar roubados antes da mesa, o cão à espera.

Anos volvidos, quando regressei do outro continente, o coração já não batia.

A casa grande e bonita estava lá.

Mas eu não a encontrei.



4 comentários:

Rocha de Sousa disse...

jawaa amiga,
Foi um gosto vir aqui espreitar e ler esta bela peça de memórias, e
bem visível como eu gosto. No meu
caso, a escrita é um pouco devora-
dora. No seu, pelo menos nestes exemplos, é como o olhar naturalis-
ta através de uma câmar de cinema.
Vê-se tudo, em jeito de um plano-sequência. Parece um conto para adultos, mas feito de maneira a uma uma partilha com filhos peque-
nos.
Obrigado pelo comentário ao «Qua-
dro». Aquela escrita está pora ir à revisão e faz parte de um dos meus projectos sem começo.
Em breve lhe darei mais notícias.
Um abraço
Rocha de Sousa

Luisa disse...

Por momentos vivi a minha infância e juventude. Júlio Diniz que ainda leio com agrado e o velho fogão de lenha que também havia em minha casa com todo esse aparato que descreves, torneira de água quente e tudo. Era junto dele que deixávamos o sapatinhos para o Menino Jesus encher no Natal. Com a vinda para a cidade, para acivilização do gás, o pobre fogão lá ficou para trás abandonado.

bettips disse...

Gostei imenso. desta escrita de intimidade da casa... Bjinhos

Sant'Ana disse...

Estes encontros com as memórias nem sempre são a rosa-pálido. Por vezes atingem o rubro na constatação da realidade, ali a três dimensões. Ou quando se deixa de ter dimensão e tudo passa a plano.
Mais do que um retalho de tempo, um bocado de história.

Palavras simples que contam sentires complexos de beatitude e revolta.
Sinto-me esmagada.