sábado, dezembro 22, 2007

A Consoada


Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe:

– Boas festas! – desejou-lhe então, a sorrir também.

Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas, crescia água na boca; que mais faltava?

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.

– É servida?

A santa pareceu-lhe sorrir outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.

– Consoamos aqui os três – disse, com a pureza e a ironia dum patriarca. – A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.

Miguel Torga



7 comentários:

Rafael Almeida Teixeira disse...

Aprendo cada vez mais quando venho aqui.
Hoje a humildade aumentou depois desse texto lindo.
Bom natal para você amiga.

Manuel Veiga disse...

excelente Torga.

Feliz Natal...

Sant'Ana disse...

Coisas puras, homens sãos.

Muitos sonhos, muito sorriso, muita beleza agora e para todo o ano.

Obrigado por tudo quanto me ofereces aqui.
Chama-se paz.

Um beijo

Rui Caetano disse...

Uma feliz Natal e um mundo de sonhos concretizados.

Luíza Frazão disse...

Um grande abraço neste Natal e muita inspiração e sucesso para o novo ano.

Luíza

Rocha de Sousa disse...

Pois é, Jawaa, estou com o rafael e
também digo que «aprendo cada vez mais quando venho aqui». Pensando na «humildade desse texto lindo» penso também que o seu talento deve muito ao Torga. Está ali in-
teirinha a sua medida das palavras e o modo bem carpinteirado da sua relação. De resto, uma história destas, tão serrana e tão subtil no que afirma e no que nega, conta bem o que se parece com o seu ima-
ginário e o seu jeito de dizer.
Bem haja pela lição.
De novo um bom ano novo.
Rocha de Sousa

bettips disse...

A pureza de homens da terra que o nosso Torga tão bem conhecia. Lembrei, de tanto tempo passado, este conto de encantar almas. Obg
Bjinhos