Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe:
– Boas festas! – desejou-lhe então, a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas, crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.
– É servida?
A santa pareceu-lhe sorrir outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
– Consoamos aqui os três – disse, com a pureza e a ironia dum patriarca. – A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.
Miguel Torga
7 comentários:
Aprendo cada vez mais quando venho aqui.
Hoje a humildade aumentou depois desse texto lindo.
Bom natal para você amiga.
excelente Torga.
Feliz Natal...
Coisas puras, homens sãos.
Muitos sonhos, muito sorriso, muita beleza agora e para todo o ano.
Obrigado por tudo quanto me ofereces aqui.
Chama-se paz.
Um beijo
Uma feliz Natal e um mundo de sonhos concretizados.
Um grande abraço neste Natal e muita inspiração e sucesso para o novo ano.
Luíza
Pois é, Jawaa, estou com o rafael e
também digo que «aprendo cada vez mais quando venho aqui». Pensando na «humildade desse texto lindo» penso também que o seu talento deve muito ao Torga. Está ali in-
teirinha a sua medida das palavras e o modo bem carpinteirado da sua relação. De resto, uma história destas, tão serrana e tão subtil no que afirma e no que nega, conta bem o que se parece com o seu ima-
ginário e o seu jeito de dizer.
Bem haja pela lição.
De novo um bom ano novo.
Rocha de Sousa
A pureza de homens da terra que o nosso Torga tão bem conhecia. Lembrei, de tanto tempo passado, este conto de encantar almas. Obg
Bjinhos
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