quinta-feira, julho 20, 2006

Felicidade...

«Fiquei, imóvel. Podia ser verdade, assim tão fácil, fábula em fecho feliz? Fiquei olhando o rosto de Luarmina, como se ela sempre tivesse estado ali, como se fosse apenas mais uma das noites de uma inteira vida. Todas as vezes que a gorda mulata despetalou flores, nesse «mar me quer – bem me quer», afinal, era já o meu amor que desfiava aquele gesto dela?
- Mas agora, Luarmina, me restou uma doença.
- Que doença?
- Você. Você, Luarmina, é minha doença.
- Eu prometo, Zeca, eu regresso depois, à noite, para curar de vez essa doença.
- Mas Luarmina, jura que você é mesmo essa mulher do barco!
Ela se cala. Cabeça baixa, murmura:
- Vou deixar a porta aberta. Assim você escuta o mar…
Escutando o mar adormeci. Mas não era eu todo que adormecia. De igual maneira que meu pai morreu em porções, agora eu caía no sono às partes, uma de cada vez. Primeiro, foi a memória que tombou em abismo, inexistindo. Como se o mar ensinasse, por fim, minhas lembranças a adormecer. Como se a minha vida aceitasse o supremo convite e fosse saindo de mim em eterna dança com o mar.»

Mia Couto

As noites em desassossego, perdida sempre em espaços desconexos, escadas, pedras, atalhos sem saída, dentro, fora de casas, quintais, ermos, altos, sempre altos, excessivamente. Subitamente um mercado imenso, ervas, licores, cheiros intensos, diferentes, incomuns, adocicados, picantes, cheiros coloridos, frutas, ruído, sons… eta, mulher bonita! O calor é desmedido e mistura no ar os odores que se desprendem das flores, dos frutos, das ervas de cheiro, da transpiração das gentes, dos perfumes.

Acordar e ouvir o dia que amanhece antes do sol no chilrar do ninho dos pardais, depois o gemer das rolas e só então o acender do sol com a alegria do melro vivo e buliçoso. Abrir a janela e ler o mundo no papel macio e brilhante. Ler que as pessoas mais velhas são mais felizes… Serão!

Em jeito de Mia Couto, impensar o futuro, despensar o passado e perambular nas veredas conhecidas buscando o prazer num tempo de faz-de-conta, o coração mansinho a passear os contentes da vida, a negacear os tristes de cada esquina de rua, encher-se de sangue novo e bater forte, eta, mulher bonita!

A felicidade, como a liberdade, não existe. Ela acontece e é preciso colhê-la em cada momento, aqui e além, como num campo de flores imenso e belo mas onde temos de escolher ao cortar os pés para uma jarra: uma já murcha, aquela tombada, uma pétala roída, outra queimada, enegrecida; as muito belas, as muito puras são esparsas, todavia há que as encontrar, elas estão ali. Os nomes abstractos, a beleza também, só se encontram dentro de nós e nem sempre aparecem. Os anos a mais dão segurança, pesam mais na gravidade, prendem-nos com firmeza para podermos caminhar olhando o céu e as nuvens e a lua e as estrelas, sem cair.

O meu tempo mais bonito, mais prenhe, total e imenso, acabou. Era o tempo em que o tempo passou ao lado, a História era eu só e eu era grande e poderosa. Meu Pai contou-me que se ia, da outra ponta do oceano, quando nascia a ponte que marcou a cidade grande e eu mal olhei porque construía em mim a primeira ponte para a vida; o Maio de 68, o L. Armstrong, que importa a Lua se outra cresce no meu ventre, o mundo era meu e grande, o tempo era eu.

Hoje sou feliz só porque olho para trás e não quero repetir o tempo.

Não seria capaz.




4 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns,Parabéns,Parabéns.

Choninha disse...

O tempo não se repete. Assim como "não te banhas duas vezes na água do mesmo rio". Gostei.

Choninha disse...

Heráclito de Éfeso.


Sorry, o seu a seu dono!

Anónimo disse...

Jawaa,
Como me delicio com os teus escritos.
Obrigada pela partilha.
Um bjinho