segunda-feira, junho 26, 2006

Bissonde

«Naquela roça grande não tem chuva
É o suor do meu rosto que rega as plantações
Naquela roça grande tem café maduro
E aquele vermelho-cereja
São gotas do meu sangue feitas seiva.
O café vai ser torrado
Pisado, torturado
Vai ficar negro, negro da cor do contratado.

Negro da cor do contratado!
Perguntem às aves que cantam
Aos regatos de alegre serpentear
E ao vento forte do sertão
Quem se levanta cedo? Quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
A tipóia ou o cacho de dendém?» ...

António Jacinto


Eu não gostava de ir ao mato de calças compridas. Por aquela época usavam-se umas calças pelo joelho, ditas «à pescador», mas que surtiam o mesmo efeito das saias e era assim que me vestia. Isso levantava protestos em casa, pois não protegiam dos picos das plantas e das ferroadas de bichos; depois, as minhas pernas andavam sempre arranhadas, com cicatrizes pouco estéticas, que meu pai tentava remediar esfregando-as com seiva de um cacto ranhoso que eu detestava – o hoje tão apregoado Aloé. Lá razão na sua teoria, ele tinha. Só que eu não abdicava da minha e ela prevaleceu sempre. É que eu, de pernas à mostra, podia vigiá-las de quando em quando com um simples olhar e, mal lobrigava um reles bissonde a iniciar a sua caminhada para as altas esferas, logo me precavia.

Às vezes, nas nossas caçadas às perdizes pelas tardes soalhentas, meu pai, a certa altura, desatava a correr e ia dizendo «espera aí, mulherita, espera aí», com a voz um pouco acima do tom. Ei-lo atrás de uma moita a descer as calças à pressa, já invadido pelas célebres formigas gigantes que entretanto picavam todas a um tempo... Ora bem, era disto que eu me defendia. Não queria dar oportunidade às guerreiras de subirem em silêncio e na obscuridade, para depois do ataque me ver humilhada a arrear as calças hic et nunc!

Numa ocasião destas, em que meu Pai se escondia atrás de uma das tais moitas, eu corri até uma pequena clareira de terra vermelha livre de bissondes e, olhando em redor, vi a uns metros uma árvore carregadinha de loengos. Era em Setembro. As primeiras chuvas tinham caído e rescendia a terra molhada. Rebentavam tortulhos por toda a parte e os mabocos iam aparecendo. Afadigada a colher loengos, esqueci o bissonde, os lagartos, as cobras...

Entretanto meu Pai chegou com o cão aos pulos em seu redor e a sua conversa risonha. O meu entusiasmo de apanhar fruta logo esfriou com a sua voz de repente alterada e imperiosa num «Segura o cão! Não saias daí!». Deitei a mão à coleira do Piloto, um perdigueiro dócil mas possante, que tinha bem mais força do que eu. Vendo o dono pôr a arma à cara e farejando o perigo, procurava soltar-se. Abracei-me ao seu pescoço e aguardei o som do tiro que logo surgiu para meu sossego e liberdade do cão.
Era uma Buta (Surucucu), uma cobra enorme – em grossura, pois não tinha mais do que um metro de comprido – que havia sido ali atraída pelos vermes de alguns cogumelos já apodrecidos. Descuidada a olhar para o alto, eu quase a ia pisando e sua picada era mortal.

1 comentário:

Anónimo disse...

As minhas memórias vão para o poema,que virou canção na voz do Rui mingas e que uma colega de Coimbra cantava divinamente.
Naquela roça grande...beijinhos.