quarta-feira, março 25, 2009

Relance

(…)

Os dois sabem que são doidos, estendem os dedos na escuridão
entre as luas. Os dois sabem que mais adiante podem arder
de repente no meio do Verão, consumidos pelos segredos


e pela indiferença. Noites sem sexo são perfeitas, também;
e raras, e condenadas e incompletas. Borboletas no estômago,
batendo asas contra todas as paredes do corpo – não deixando
que ele adormeça, inquieto e insatisfeito, voltado para dentro

e para o passado. Românticos que se encontram quando nenhum
deles esperava outra oportunidade, outro caminho. Nunca estamos
preparados, diz um. Nunca estamos, repete o outro, quando
a primeira borboleta sossega depois de um beijo em dívida.


Francisco José Viegas




O palácio da vida é sumptuoso e vário. Sempre uma escada, aberta em degraus mais ou menos íngremes, mais ou menos largos, mais ou menos arredondados. Mais ou menos espaçosa, quantas vezes apertada entre paredes de pedra húmida e negra.


Subir é preciso. Na escalada emergem os momentos de prazer e de raiva, de esplendor e infortúnio. Crescem o musgo a hera, os fetos, a manta clara e ovo das primaveras. Dos patamares periódicos surgem as mãos que nos damos, as amizades, os amores, os desamores, a aprendizagem do convívio, as dores da separação dos afectos, o caminho árduo da sobrevivência. Por entre a cor, as flores, os pássaros chamando a vida, a chuva escorrendo, a tempestade troando, a água afagando as rochas, desejando-se em rios, perseguindo o mar.


Cumpre a nós escolher os passos, alisar as pedras, amainar as tempestades que pisamos, porque o caminho é de retorno. De retorno à solidão em que surgimos no caminho primeiro de chegada à vida. E a sabedoria está onde é preciso ser firme, equilibrar-se sem corrimãos onde os patamares escasseiam e um único piso se abre em galerias de perder a respiração.


Percorrer então uma a uma, vagarosamente, as penas que nos cobrem tornando-nos mais leves, o espaço abrindo-se. A águia sobrevoando o ninho. O cisne mirando-se no lago. Quem sabe o beija-flor prestes a ser comido pela serpente.



4 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Subir é difícil, descer também. Mas
essa realidade é própria do fio da
nossa condição, fas parte da estru-
tura do ser humano,biológica e psi-
cológica. O sonho faz parte disso e
os surrealistas procuraram petrifi-
car as respectivas imagens, prote-
ger tudo com a eternidade, na for-
ma de um ver que se antecipa às me-
tamorfoses do acontecer.
Bela, e consoladora mesmo debaixo
da chuva, é esta prosa de Jawaa, é
esta visão da vida que a faz afir-
mar -- «saber é ser firme». Diante
de um planeta ainda florido, povoa-
do de pássaros lindíssimos, gazelas
correndo, elegantes cavalos juntan-
do trotes na planície amarelada, o
homem ainda contempla na margem de
todosos rios.
Jawaa passa-nos algo desta beleza,
olhando em volta, numa paisagem ro-
mântica. Mas a lucidez da sua men-
sagem é implacável:
«Quem sabe o beija-flor prestes a ser comido pela serpente?»
«Saturno devorando o próprio filho»,célebre tela de Goya, ante-
cipa a hipótese cósmica, da raiva
humana, em que o horror devora a beleza.
É preciso subir para estarmos aten-
tos aos sinais.
Rocha de Sousa

Paula Raposo disse...

Assim é. Como gostei de te ler!! Muitos beijos.

Anónimo disse...

percurso com momentos de intensa beleza e provações, para os quais "nunca estamos preparados".
um abraço, jawwa

bettips disse...

Neste lugar (Castelo Branco...) achei piada ao rei Filipe I, que Portugal esculpiu como um gnomo, ao lado dos "nossos"!

O retorno, que se queria sereno, diria até com alguma resignação pela imponderável escada/escala de viver.
(palavras que digo, sossego que procuro)