quarta-feira, abril 19, 2006

Dor de Escrita

«Sou mais alto do que a palmeira,
porque os meus olhos chegam às palmas,
chegam às aves voando por cima das palmas.

Sou mais longo do que um rio,
porque ouço o longínquo rumor do mar
ou fechando os olhos vejo o fulgor das praias.

Sou mais poderoso do que uma leoa,
porque a minha escrita chega mais longe que o seu rugido,
chega às mãos da minha amada, a dor escrita,
chega mais longe que o rugido,
a dor escrita chega às mãos da minha amada.»

Misquitos - América Central (trad. de Herberto Hélder)

O primeiro estádio de desenvolvimento literário é o lirismo. São as nossas experiências individuais que apetece contar, é o nosso subjectivismo que pretende manifestar-se. A vida depois ensina a objectividade: deixa de haver lugar para divagações de tipo romântico e se há algo a dizer que seja claro e rápido. É o que os outros pretendem de nós, só que nem sempre é o que somos capazes de fazer. Porque a nossa realidade não está por aí, clara e nítida e rápida. Ela está bem cá dentro e nem sempre clara, nem sempre pronta, nem sempre consciente, nem sempre explícita para nós próprios. Por isso nunca é fácil escrever; é que por entre os dedos correm, além da nossa vontade, o livre arbítrio da nossa intimidade. E cito Michaud: «Não se olhem ao espelho; homens, contemplem-se no papel!»

A nossa fazenda era, como já referi, o pequeno mundo onde se esgotam os meus sonhos de criança e de adolescente também. Era uma habitação enorme, com portas e janelas altíssimas de madeira, e ainda recordo a monumental chave da entrada principal da casa que teria uns 30 cm de comprimento. Rodeava a casa um muro enorme de adobe e, da parte de fora dele, um fosso de cerca de um metro de largura que se mantinha sempre limpo para evitar a entrada de animais menos desejados, como cobras e quejandos. Dentro do muro, a horta e o pomar imenso de larajeiras e tangerineiras; também cresciam nespereiras, mangueiras, figueiras, uma pereira. Ah, e a goiabeira, junto ao tanque, sobranceira à vala. Os caminhos da horta eram marcados a plantas de abacaxis, frutos suculentos e dulcíssimos como nunca voltei a comer. Havia ainda a loja e o armazém e uma parte da casa que esteve a cargo, desde que me lembro, do Timóteo, um primo e afilhado de minha mãe, ido de cá ainda novo, a seu chamado.

Era o local das férias grandes, principalmente porque com elas coincidia a época da colheita do milho, no cacimbo, que ia de Maio a Agosto. Vinham os avós de Luanda, a tia e mais tarde os primos, vinham os amigos, deles e nossos, era a época mais esperada do ano, embora fossem frequentes as idas ao longo do ano. Meu pai nessa altura ajudava o Timóteo e nós preenchíamos o tempo de mil maneiras. Aqui festejou connosco um aniversário de meu pai, alguém que já não está entre nós e que foi grande na moda portuguesa. O Zé Carlos, na altura um pequenito gorducho e alegre que pertencia com minha prima a um grupo de teatro (Cremilda Torres) e já revelava manifesta inclinação e jeito para pintar as amiguinhas e fazer penteados...

Lá para os finais da colheita, acontecia por vezes aparecer algum “Seculo”, velho idoso e respeitado, que só muito esporadicamente saía de casa. Eram-lhe prestadas certas deferências e na loja, nesse dia, as conversas eram mais moderadas, com cumprimentos efusivos e respeitosos. Meu pai também conversava alegremente com ele, entre palmas e risos, pois as recordações de episódios passados sucediam-se e eram do agrado de todos. Cultivava-se ali o dom da conversa e o diálogo entre os dois “Seculos” era escutado com devoção. Nunca ouvi que tratassem meu pai por “Tchindére”, designação dada a qualquer homem branco, mas sempre “Sècúulo”, com alongamento da vogal da sílaba média e abertura completa do e.
Tendo sido solicitada a presença da “Queve”, meu pai veio um dia buscar-me e levou-me junto de um velho respeitavelmente sentado numa cadeira, com umas barbas enormes e lindas, completamente brancas. Ele quis apertar a minha mão mas eu encolhi-me medrosa, pregada a meu pai, pois a sua figura, por insólita, assustou-me. Pareceu-me pequeno porque se manteve sentado, e com umas vestes escuras que o cobriam até aos pés. Ainda hoje recordo perfeitamente aquela aparição e durante alguns anos receei que ele voltasse a surgir diante de mim. Concretamente, não sei a razão desse temor, mas prende-se com as histórias que acerca dele contavam os criados mais velhos da casa.

Anos mais tarde, recordo ter ido, desta vez cumprimentar, a velha mãe do nosso cozinheiro Manuel, também Mestre-Escola da aldeia. Era uma Senhora sem idade, de rosto feio mas muito afável, que não falou, pelo menos diante de mim, apenas sorrindo e meneando a cabeça ao que se dizia para ela e por ela. Na sua frente se contaram histórias maravilhosas de pedras preciosas que ela possuía (possuíra?) e de uma mina de ouro que por ali existira mas que seria fatídica para quem tentasse tocar nela. Falava-se de homens que levavam esse ouro ao longo do rio Queve até Novo Redondo, onde seguia em barcos para o Brasil. Meu pai parecia dentro de tudo, mas às minhas perguntas respondia do mesmo modo evasivo deles, e desisti de procurar algum fundo de verdade. O Manuel recusava-se simplesmente a falar disso. Garantia, isso sim, que vira uma vez, há muito tempo, uma pedra grande na mão da mãe que brilhava esplendorosamente ao sol.

Até muito tarde, meu Pai foi para mim também um homem sem idade, daquela geração de “Secuulos”, sábio e poderoso, alguém que viveu todos os mistérios e lendas, tornado bondoso pela longa idade, paciente e calmo, dono da Morte.


1 comentário:

Anónimo disse...

Que lindo! Pk nunca conta estas historias nas longas noites de Natal?
Bjs de saudade.

PS. Afinal este é k é o texto que eu mais gostei de ler aqui...lol!