segunda-feira, abril 24, 2006

Os Meus Amores

... Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é êsse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com… (sei lá
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sôbre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
deve pegar.

À memória de João Guimarães Rosa por Carlos Drumond de Andrade em 21.XI.1967

Manhãzinha e o Velhote, pequenino e frisado de cara e cabelo, surgia no alpendre quando a mãe cuidava dos seus gerânios, entre assobio e cantarolar ...ssi...ssi...ssi...ssu...ssu...ssi..., sempre a sorrir sem dentes por entre rugas e covinhas, sem um cabelinho branco. Nas mãos a tigela funda de esmalte para levar as batatas, servia de batuque a anunciar a sua chegada, pedindo à senhora instruções para o almoço.

O Velhote já era o cozinheiro da fazenda quando eu nasci e a minha mãe tinha por ele um carinho profundo pelos cuidados e compreensão de que ele sempre a rodeara quando recém-casada e ainda menina, se vira sozinha com meu pai, longe de toda a civilização. Nunca a ouvi dar-lhe a mais pequena admoestação. Quando um dos meninos aparecia febril, sem apetite, ou levemente constipado, ele imediatamente matava uma galinha e fazia canja. «Ó Velhote, parece impossível, não era preciso…!» «Precisa, precisa, senhora, logo, logo, passa!!»

Nada a fazer, que já tudo estava feito.

Pequenina, eu cirandava por ali, vendo-o nos seus afazeres. Batatas, sempre batatas. Todos os dias ele cozia batatas e todos os dias eu via as batatas serem passadas pelo passador de esmalte azul, com uma moca de madeira. O meu poder de comunicação nessa altura era decididamente reduzido, pois eu acho que o Velhote não me entendia; eu percebia-o. Porém o meu português não era suficientemente apurado pela certa, e o dele deixava muito a desejar. Respondia-me sempre lá do fundo do seu sorriso enrugado onde até os olhos desapareciam.

- Vió...ó...ó...
- Quéevèèè...?
- Porquê Vió todos os dias esmaga batatas?
- É prá sopa, Minina.
- Tem mais batatas?
- Sim, Minina.
- E vai fazer a mesma coisa?
- Sempre faz assim mesmo.

Mantinha-se a dúvida. Por azar, nos dias em que eu o via passar as batatas, na mesa apareciam batatas inteiras. O Velhote era mágico, decididamente.
Não recordo quando esta confusão se desfez, mas ficou-me esta reminiscência da alta infância. Do tempo em que havia laranjeiras até à entrada da porta e todo o quintal era um imenso pomar sempre verde.

(Ficou por lá, no meu álbum, uma fotografia do Velhote, comigo ao colo e segurando um prato de comida no mesmo braço em que eu estava. O outro braço, com um garfo na mão apontava qualquer coisa no alto da laranjeira sob a qual passávamos. Parece que só ele conseguia, sem choros, fazer-me engolir o que eu sistematicamente recusava na mesa. Conforta-me que sempre o deliciei pela vida que com ele compartilhei até à minha adolescência, comendo com apetite e louvando tudo o que vinha feito de suas mãos.)

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