sábado, novembro 29, 2008

Tragédia anunciada

Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós meu bem
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d’esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Juan Roiz de Castell-Branco


Nuvens acasteladas em gradações de cinza caminham do horizonte ameaçando abrir o céu em cordas de água. Olho ainda a pureza do infinito que me cobre, para encontrar algum sinal. Mas o azul não responde.

Percorro o espaço vazio onde me habituei a ver, primaveras adentro, o verde frondoso das magnólias centenárias manchado ostensivamente de branco, pétalas imaculadas, desmanchadas, olorosas. Subo os degraus de pedra, deformadas pelo uso, pelo tempo, passo a soleira da porta de madeira enegrecida e caminho devagar pela nave altíssima, silenciosa e fria, as ogivas sucedendo-se no alto, esmagando tudo o que sou, despojando-me de todos os preconceitos, todos os temores, todas as solidões.

Apago do olhar os poucos ícones religiosos, não vejo os bancos corridos de madeira vazios, sigo as colunas de pedra lisa até às gárgulas, e os olhos são atraídos pela pedra rendilhada que ornamenta a porta escondida para lá do altar. Antes, no transepto, os túmulos e as rosáceas escrevendo a História.

A fé que alimenta os homens na construção de monumentos ímpares de grandeza, hoje propriedade do mundo global, a fé que conduz os homens em epopeias temerosas arrostando os mares então desconhecidos, a fé que consagra os mais altos desígnios de abnegação e altruísmo, a mesma fé os une, para inenarráveis violências que arrasam corpos e os espíritos dos homens de bem.

A prece tem sempre lugar, mesmo quando se não professa religião alguma.

6 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Estes passos compenetrados ao longo
da altíssima nave do tempo lembram
de facto,para além da pedra desgas-
tada e das pétalas morrendo, a fé que moveu os homens num caminho ti-
do por salvador, entre epopeias e belas santificações,os mesmos que,
transpostos no tempo geneticamente
marcados pela sede de sangue,trocam
hoje as Cruzadas e seus genocídios
por outras «inenarráveis violên-
cias».
Sim, a prece. A prece porque sim.
Ou porque é o que resta.
Rocha de Sousa

PS.Já apurei a história (que eu conhecia) da morte da Secla.Está
escrito num post simétrico em de-
senhamento.

Justine disse...

Um texto sem tempo, poético e generoso, o teu. Só duvido se é a fé que motiva os homens a levar a cabo as tarefas que apontas.
E a prece...só se for prenúncio de acção

vida de vidro disse...

Por vezes é só à prece que nos agarramos... mesmo sem religião alguma. Belo texto. **

Manuel Veiga disse...

intemporal.tal oração. que até um heretico balbucia...

beijo

dona tela disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
M. disse...

Porque a prece pode ser apenas a alma dos homens?