quinta-feira, março 01, 2007

Temporal

«Subitamente, naquele vasto horizonte, até então puro na sua luz horrenda, dois castelos de nuvens cerradas e negras começaram a alevantar-se, um da banda da Europa, outro do lado de África.

Os bulcões conglubados corriam um para o outro e multiplicavam-se, vomitando novos castelos de nuvens, que se difundiam, flutuando enoveladas com formas incertas.

E aquelas montanhas vaporosas e negras rasgaram-se de alto a baixo em fendas semelhantes e algares profundos, e os seus fragmentos informes e cambiantes vacilavam trémulos em ascensão diagonal para as alturas do céu.

Ao aproximarem-se, ao dois exércitos de nuvens prolongaram-se em frente um do outro e toparam em cheio. Era uma verdadeira batalha.

Como duas vagas encontradas, no meio de grande procela, que, tombando uma sobre a outra, se quebram em cachões que espadanam lençóis de escuma para ambos os lados, antes que a menos violenta se incorpore na mais possante, assim aquelas nuvens tenebrosas se despedaçavam, derramando-se pela imensidão da abóbada afogueada.»

Alexandre Herculano


Não vi a tempestade chegar.

Era um fim de tarde e achei natural a cor esvair-se; não ergui o rosto, não olhei o horizonte, não vi as nuvens negras subindo de manso, avolumando-se e cobrindo o céu ainda azul.

Quando senti chover achei que não era, e fui à varanda saber do ruído. Ao abrir a porta, descendo o degrau, o mundo acendeu no mesmo instante, um trovão tirou-me o chão dos pés e eu estatelei-me desamparada no chão de ladrilho vermelho. Fiquei quieta, à escuta do silêncio para além das pingas grossas de chuva que continuavam a cair dos telhados, das árvores, que batiam nas pedras da entrada e espargiam em redor. Tenho a certeza de não ter perdido os sentidos, só não pensei em mover-me. Só quando senti junto de mim a Siriquita, a cadelinha pinsher, minha companheira de todas as horas, ganindo baixinho e tentando lamber-me a cara, quando o Velhote correu e quis pegar-me ao colo, reagi de alguma forma.

Nada me aconteceu para além do susto e do medo que ficou das trovoadas e relâmpagos.

Continuo a gostar da chuva, de vê-la cair com força, tocada pelo vento, mudando de direcção e riscando toda a paisagem, ou mansa e quieta deixando ouvir apenas os beirais carpindo. Às vezes consigo escapulir para o meu outro tempo e senti-la cair sobre o meu corpo, os meus cabelos, vê-la através dos óculos, abrir os braços e aspirar o odor da terra molhada.

Saudosismo apenas? Não creio.

Aqui a chuva esfria as mãos, não refresca o corpo.

O mar não afaga o corpo, gela os ossos.

O fogo não limpa, incendeia.

A vida não é. Passa.


11 comentários:

vidavivida disse...

Adorei o texto bem explanado.
Sabes que também gosto da chuva,de a ver cair copiosamente espreitando através dos vidros de uma janela, bem abrigado, porque me faz lembrar, quando criança,aquelas fortes trovoadas tropicais acompanhadas de copiosas chuvadas que depois de passar, ficava aquele cheirinho a terra molhada e a atmosfera mais límpida. Gostava de ir para uns anexos da casa dos meus pais, onde o telhado era de folhas de zinco deitado numa cama que havia por lá e bem embrulhado num cobertor de Pápa,lá colocado por minha mãe, que afirmava nos proteger dos raios que caiam bem perto, sentia-me seguro e era tão gostoso!!
Bons tempos aqueles de que me lembro amiúde.
Um grande abraço

Anónimo disse...

Eu ando sempre atrasada! Quem me manda tocar tantos instrumentos, não é?
Adorei o teu post anterior. E as fotografias...!!!
Pois... também eu gosto da chuva, forte, quente ou fria... e se vier acompanhada de trovões ainda melhor!
Ao contrário da maioria das pessoas... gosto do barulho das nuvens a chocar-se. Renovam as energias, suponho. E com este post fizeste com que me recordasse de um célebre aniversário meu, ao som de uma das maiores borrascas de que me lembro. Pode ser que um dia destes, apareça lá pelos Fios...
Beijo

Rocha de Sousa disse...

Cara amiga,
Acabei de fazer no «construpintar02» uma alusão a
Eça de Queiroz, a propósito da destruição da estátua que o elegia
no espaço e no tempo, rua do Alecrim. Tudo está aos bocados junto do Pavilhão Preto do Palácio da Cidade. É um desencanto.
Digo isto porque abri vários lugares de que gosto e encarei
com o seu Alexandre Herculano, um
discurso rangente, poderoso, e a seguir à nuvem da tempestade a melodia contrapontística do seu texto. No Algarve, quando gostamos de uma coisa súbita, dizemos: «Boa Malha». Há sempre algumas incertezas, nos seus textos, um «desastre» eminente, de mistura com a esperança e a alegria. A lucidez deixa sempre a sua marca:
«A Vida não é.Passa.»
do amigo
Rocha de Sousa

Klatuu o embuçado disse...

E molha-se...

Klatuu o embuçado disse...

Obrigado pelo simpático comentário... é bem vinda...
(Não há idade nem para o horror nem para o amor...)

Dark kiss.

P. S. Aqui fica o convite para o meu outro blog: http://gothland666.blogspot.com/
... este é em círculo fechado, mas eu acho que vais gostar... basta ter bom gosto... ;)

Também sou fã do Herculano... já não se fazem homens assim!

dakidali disse...

Como sempre super bem escrito, super bonito, super profundo. Mas a vida é e passa.
Beijinhos

naturalissima disse...

Belo na sua profundidade de sensações e sentidos.

Este pedaço levou-me ao dia em que estava ao colo da minha mãe junto à janela da nossa casa, em Nacala..., a chuva grossa caia como nunca, acompanhada de relâmpagos e estrondosas trovoadas. Lembro-me do rosto da minha mãe, sereno, com um sorriso nos lábios dizendo que aquilo era bonito, que não me faria mal, que nos lavava e alimentava a terra... Ai o cheiro, que maravilha de cheiro... a terra molhada.
Mais tarde soube que a minha mãe sempre tivera "medo" dos relâmpagos e das trovoadas.

Há muito que não tomo banho de chuva. Que saudade...

Um beijinho
Daniela

veritas disse...

Obrigada por este momento. Alexandre Herculano... foi bom relê-lo. Foi muito bom passar aqui. Já estava com saudades.

Bjs. Boa semana.

Klatuu o embuçado disse...

Quando há novo post? ;)

jorge esteves disse...

Não é por acaso (por acaso foi a minha chegada aqui...) que escorrem quietudes nestes lugares. Mesmo que a Vida 'não seja, passe', passa ao sabor de cada passo. Gostei!

Fragmentos Betty Martins disse...

Querida Jawaa


A minha mensagem escrita “à minha maneira”______nos sentires que eu traduzo_________na palavra.


Um grito selvagem________a mulher cantou
deliciou e não assustou a vasta plateia________que a admirou
nas mãos________cordas de nós feitos______escondidos
e falsos sorrisos_________aplaudiram

tenha o peito cingido por uma écharpe de seda
todo o seu corpo estava preso nas malhas ______de um belo vestido
bem medido.cuidado.civilizado
bailava a plena liberdade _________ em seus olhos
o que as malhas não tinham força para prender
e se soltou das grades_______________a voz


FELIZ DIA! QUE TODOS OS DIAS SEJAM DIAS DA MULHER!

Beijo com muito carinho