terça-feira, dezembro 23, 2014

Saber Olhar, Saber Dizer

"Urros, em plena montanha, é uma terra de ovelhas. Ao romper de alva, ainda o dia vem longe, cada corte parece um saco sem fundo donde vão saindo movediços novelos de lã. Quem olha as suas ruelas a essa hora, vê apenas um tapete fofo, ondulante, pardo do lusco-fusco, a cobrir os lajedos. Depois o sol levanta-se e ilumina os montes. E todos eles mostram amorosamente nas encostas os brancos e mansos rebanhos que tosam o panasco macio. A riqueza da aldeia são as crias, o leite e aquelas nuvens merinas que se lavam, enxugam e cardam pelo dia fora, e nas fiadas se acabam de ordenhar. Numa loja de gado, ao quente bafo animal, juntava-se o povo."

Miguel Torga, "Novos Contos da Montanha"


Nos tempos que correm, escrever livros só por escrever não merece a pena.

Tantos livros publicados, tantas (in)verdades repetidas, tantos lugares-comuns sem interesse, tantos poemas que nada são, tantas palavras usadas indevidamente, tanta falácia, tanta desfrase, oportunismo que nada acrescenta ao bem da sociedade, tanta árvore sacrificada a bem do ego de cada um. 

Creio ter sido Gabriel Garcia Marquez quem escreveu com toda a propriedade: quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais a lutar por dinheiro e poder, então a nossa sociedade poderá enfim evoluir para um outro nível.

Isto é pura utopia, cada vez mais há menos lugar para o conhecimento, o poder aperta pelo dinheiro, cada vez mais dinheiro que nunca é suficiente para as necessidades cada vez mais elevadas na ânsia de possuir cada vez mais muito, cada vez mais no caminho de uma riqueza que é um pormenor, apenas isso, na aristocracia do conhecimento.

É que, cada vez mais, tudo concorre para que só muito poucos possam alcançar aquilo por que os ideais tanto lutaram, uma utópica igualdade ao nível do conhecimento. A internet tem esse poder mas é preciso saber usá-la e, para usufruir de todo o seu potencial, há que aprender o clássico - falar ler e escrever - o que cada vez mais se menospreza. Nenhum músico chega à liberdade do jazz sem adquirir a solidez das bases, nenhum bailarino dança coreografias de Pina Bausch sem ter aprendido dança clássica.

Voltando à escrita, a verdadeira boa escrita não tem nacionalidade. Como a formosura, como o ser humano bem no seu íntimo. Sinto-me beirã mergulhada na beleza das metáforas de Torga, a lã como nuvens em marcha,  como neve a amaciar a rudeza da paisagem, do chão pedregoso e inculto dos invernos frios do Nordeste transmontano.

É o manto branco a cobrir as serras, a encher os vales, os campos vastos, os lagos, os rios, é um mundo diferente daquele onde cresci, por isso o espanto, por isso o fascínio.

Não deixo porém de estremecer de emoção, uma sensação sem disfarce, sem limites, quando as dunas tocam horizontes, quando os tons de areia sugerem calor, secura, odor de queimada, quando o verde intenso dos cafezais transforma o calor e a humidade em rendas de noivado e logo a seguir se pinta de vermelho-sangue.

E também há neve a cobrir os campos, ali chama-se algodão.

3 comentários:

Freak Perfum disse...

Torga consegue transportar-nos. O "Novos Contos da Montanha" foi dos livros que mais me marcou e há pequenas frases ao longo do livro que nunca mais me abandonaram. Gostei muito do que li por aqui, vou ficar "de olho" :)

Manuel Veiga disse...

retenho de África o húmus. e os cheiros fortes. e a explosão das tempestades...

... e "perco-me" na Montanha!

beijo

joão marinheiro disse...

Grandes escritores...acabei de reler Uma fenda na Muralha e regresso aos barcos da minha memória antiga, e à Nazaré de outros tempos...
abraço de mar.