"Urros,
em plena montanha, é uma terra de ovelhas. Ao romper de alva, ainda
o dia vem longe, cada corte parece um saco sem fundo donde vão
saindo movediços novelos de lã. Quem olha as suas ruelas a essa
hora, vê apenas um tapete fofo, ondulante, pardo do lusco-fusco, a
cobrir os lajedos. Depois o sol levanta-se e ilumina os montes. E
todos eles mostram amorosamente nas encostas os brancos e mansos
rebanhos que tosam o panasco macio. A riqueza da aldeia são as
crias, o leite e aquelas nuvens merinas que se lavam, enxugam e
cardam pelo dia fora, e nas fiadas se acabam de ordenhar. Numa loja
de gado, ao quente bafo animal, juntava-se o povo."
Miguel
Torga, "Novos Contos da Montanha"
Nos
tempos que correm, escrever livros só por escrever não merece a
pena.
Tantos
livros publicados, tantas (in)verdades repetidas, tantos
lugares-comuns sem interesse, tantos poemas que nada são, tantas
palavras usadas indevidamente, tanta falácia, tanta desfrase,
oportunismo que nada acrescenta ao bem da sociedade, tanta árvore
sacrificada a bem do ego de cada um.
Creio
ter sido Gabriel Garcia Marquez quem escreveu com toda a propriedade:
quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais a
lutar por dinheiro e poder, então a nossa sociedade poderá enfim
evoluir para um outro nível.
Isto
é pura utopia, cada vez mais há menos lugar para o conhecimento, o
poder aperta pelo dinheiro, cada vez mais dinheiro que nunca é
suficiente para as necessidades cada vez mais elevadas na ânsia de
possuir cada vez mais muito, cada vez mais no caminho de uma riqueza
que é um pormenor, apenas isso, na aristocracia do conhecimento.
É
que, cada vez mais, tudo concorre para que só muito poucos possam
alcançar aquilo por que os ideais tanto lutaram, uma utópica
igualdade ao nível do conhecimento. A internet tem esse poder mas é
preciso saber usá-la e, para usufruir de todo o seu potencial, há
que aprender o clássico - falar ler e escrever - o que cada vez mais
se menospreza. Nenhum músico chega à liberdade do jazz sem adquirir
a solidez das bases, nenhum bailarino dança coreografias de Pina
Bausch sem ter aprendido dança clássica.
Voltando
à escrita, a verdadeira boa escrita não tem nacionalidade. Como a
formosura, como o ser humano bem no seu íntimo. Sinto-me beirã
mergulhada na beleza das metáforas de Torga, a lã como nuvens em
marcha, como neve a amaciar a rudeza da paisagem, do chão
pedregoso e inculto dos invernos frios do Nordeste transmontano.
É
o manto branco a cobrir as serras, a encher os vales, os campos
vastos, os lagos, os rios, é um mundo diferente daquele onde cresci,
por isso o espanto, por isso o fascínio.
Não
deixo porém de estremecer de emoção, uma sensação sem disfarce,
sem limites, quando as dunas tocam horizontes, quando os tons de
areia sugerem calor, secura, odor de queimada, quando o verde intenso
dos cafezais transforma o calor e a humidade em rendas de noivado e
logo a seguir se pinta de vermelho-sangue.
E
também há neve a cobrir os campos, ali chama-se algodão.
3 comentários:
Torga consegue transportar-nos. O "Novos Contos da Montanha" foi dos livros que mais me marcou e há pequenas frases ao longo do livro que nunca mais me abandonaram. Gostei muito do que li por aqui, vou ficar "de olho" :)
retenho de África o húmus. e os cheiros fortes. e a explosão das tempestades...
... e "perco-me" na Montanha!
beijo
Grandes escritores...acabei de reler Uma fenda na Muralha e regresso aos barcos da minha memória antiga, e à Nazaré de outros tempos...
abraço de mar.
Enviar um comentário