sábado, agosto 03, 2013

CINISMO

Passados quinze dias o doutor partiu. Percebeu de repente que tinha de ir à procura da sua infância noutro lugar. Em Munique descobriu um anuário: Klara Sollner, Schwabing, rua e número. Avisou-a da sua visita e pôs-se a caminho.
Uma mulher esbelta deu-lhe as boas-vindas numa sala cheia de luz e bondade.
“E ainda te lembras de mim, Georg?”
O doutor estava maravilhado. Por fim disse: “Então és tu, a Klara…” Ela manteve o rosto calmo com a fronte pura e inteiramente imóvel, como que a dar hipótese de ele a reconhecer. Isso levou o seu tempo. Finalmente, o doutor parecia ter descoberto qualquer coisa que lhe provava que a sua companheira de infância estava, de facto, na sua frente.

 Rainer Maria Rilke in «Histórias do Bom Deus»


Nasci num planalto a quase dois mil metros de altitude e a duas centenas de quilómetros do mar que encontrei pela primeira vez aos oito anos de idade. Dessa mesma altura a primeira viagem de avião, num novíssimo Dakota, com meia dúzia de passageiros a bordo, eu e a minha amiga dilecta de ainda hoje, ambas entregues aos cuidados de uma hospedeira. Descida no aeroporto do Lobito e finalmente Luanda, os tios, os avós à espera.

E assim o mar. Aquela massa imensa de água que findava para além do horizonte, as ondas chegando, uma e outra vez altas e logo a correrem na areia a baterem com força nas pedras em espuma branca a salpicar-me o rosto. E as gaivotas voando em círculos, pousadas na areia, pousadas nos dongos dos pescadores, eles concertando as redes sob as palmeiras da Samba. Foi mais, foi muito mais, foi maior do que o rio e as lagoas mansas do meu planalto.

Ainda hoje essa paixão se mantém. Não consigo entrar nas águas demasiado frias da costa do Atlântico nestas latitudes, mas olhar o mar, apenas olhar o mar, ouvir o som do mar, é um prazer sem tamanho. É junto ao mar que me encontro, descanso nas minhas raízes, nos meus sonhos de antanho, antes da praia se encher de gente, a praia vazia, vazia até das conchas coloridas, os búzios que já não há, das pedras que incansavelmente rolavam brilhantes, dos milhares de pequeníssimos caranguejos que corriam à frente dos nossos pés e se escondiam nos orifícios da areia. 

O mar me ajuda a constatar que tudo mudou. Tudo mudou menos o mar. A força do mar, a suavidade do mar, a beleza do mar. Porque as faces das pessoas não se envergonham das mentiras, olham nos olhos e faltam à verdade. Olham nos olhos e dizem o que não sentem, olham e defendem o que todos sabem não ser a verdade. Asseveram as falsidades que nos enredam num caminho sem volta, que nos tolhe todos os movimentos, que nos derrota. 

Só o mar não mudou, nas praias sem bichos, sem pedras, sem palmeiras, sem coqueiros, sem dongos.

2 comentários:

Manuel Veiga disse...

o "marulhar" da tua escrita. sempre bela...

beijo

Rafael Almeida Teixeira disse...

" Porque as faces das pessoas não se envergonham das mentiras, olham nos olhos e faltam à verdade. "

Por quê?


PS.: abraços afetuosos \0e/