quinta-feira, julho 29, 2010

Impaciência


"E agora que fazer? Gostava tanto de levar até ao fim os dois livros começados. O romance. Sei agora mais claramente o que queria. O périplo de uma vida à procura da palavra. Viemos ao mundo para a encontrar. A palavra total, a que nos diga inteiros, a que nos diga a vida toda. Procurei a minha e não a encontrei. E estou a chegar ao fim. Ou encontrei apenas a do silêncio.»


Vergílio Ferreira, in «Conta Corrente»


Deve ser deste calor intenso que grassa por aqui, estou sem vontade de teclar um texto; vou tentar escrever  à mão e depois passar, é uma outra solução a que por vezes recorro. Deixo hoje as palavras dos outros que também dizem de mim, como dizem! A seguir, palavras de Mia Couto, o escritor moçambicano que enfeita a nossa língua com novíssimos vocábulos cheios de vida.

«Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa.
Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário em todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
 – Pai!
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez. "Não é da luz do sol que carecemos. Milenarmente a grande estrela iluminou a terra e, afinal, nós pouco aprendemos a ver. O mundo necessita ser visto sob outra luz: a luz do luar, essa claridade que cai com respeito e delicadeza. Só o luar revela intimidade da nossa morada terrestre. Necessitamos não do nascer do Sol. Carecemos do nascer da Terra." »

2 comentários:

Justine disse...

Mia Couto, um prazer que até vai muito bem com este calor sufocante!
Abracinhos de bom fim-de-semana refrescante:))))

rochadesousa02@gmail.com disse...

É aterrador, o desejo luminoso e cruel de e querer o que não nos
podem dar.
Já Calígula (o que Camus levou pa-
ra o teatro) clamava todas as noi-
tes pela lua. Esperando pelo cum- primento da sua vontade, e vendo que ninguém lhe trazia a lua, o Cé-
sar louco partia o vidro de um alto
espelho, iludindo-se com o treluzir
do estilaços tombando em curva no
mármore do chão.