quinta-feira, maio 07, 2009

Silêncio


Pedra a pedra construo o meu poema
e é nele que dos dias me defendo.
Nada sei de emoções manipulo morfemas
e nas cidades sinto a solidão dos campos.
Humano mesmo se demasiado humano
não peço ou posso privilégios de poetas
e desconheço a carne cerebral de que careço nos
sonhos que me semeiam as semanas
cingidas de cidades sossegadas

onde só o silêncio é soberano

Ruy Belo



Olho devagar o tempo e sei que não quero voltar atrás.


Como se em cada hora o mundo se enleie de prazer, se desfaça em desânimo ou simplesmente adormeça e eu mantenha a capacidade de sentir por todos os poros invadir-me o silêncio duma solidão merecida. Aquela solidão que me preenche a vida e me dá este olhar manso, capaz de ver os homens acordarem a tempo para reconsiderar sobre a sua missão na Terra.


Foi ontem que me atulhei de sonhos, me lavei em lágrimas, me desfiz em ânsias. Os sonhos verdadeiros continuaram sonhos, redondos e doces, os outros não cresceram ou foram pisados, comidos, apodrecidos pelo bolor da humidade e do esquecimento. As lágrimas não resolvem coisa alguma e as inquietações desmedidas abrandam com o passar das estações, lavadas pelo caminhar inexorável das horas, dos dias um atrás do outro.


Tudo, mas tudo, o que tomei por certo, correcto e verdadeiro na minha construção como pessoa, se desmoronou já depois da casa coberta. Foi o tempo das chuvas, foi o cacimbo agreste, foram as queimadas, foram as tempestades, foi o rio que subiu as margens, as lagoas soçobraram e a vala deixou de correr límpida e lesta. Um dia, o vento levou as telhas e as paredes quedaram-se nuas.


Ser feliz ou infeliz é uma coisa tão vaga que não chega a ter sentido. A felicidade é algo tão etéreo, adejante e breve como uma borboleta, daquelas a quem dão o nome de efemérides porque não duram mais do que o tempo de uma rotação da Terra. Mas uma borboleta é sempre uma borboleta e há-as lindíssimas, de asas coloridas e caprichosamente desenhadas. Algumas têm asas enormes e deslocam-se com a brisa em movimentos irregulares, ondeantes, levíssimas. Quando pousam e se deixam olhar, são fascinantes. Têm um corpo esguio e atento naquelas antenas longas e delicadas, de ponta enrolada.


Pois a felicidade é talvez isso. Pedaços de vida curta e breve. Quando surge é um deslumbramento de asas enormes. Procurá-la, é tolice. Ela simplesmente acontece. O erro humano está na avidez, a necessidade de a possuir, reter, guardar, prender. Só os abraços devem ser intensos, sem tempo cronometrado. Há os abraços que permanecem, mas um abraço é uma entrega mútua, ninguém é abraçado se não abraçar também.


É uma palavra bonita, bonita como uma borboleta.


5 comentários:

Justine disse...

A felicidade é uma fulguração,uma vertigem passageira das emoções.Há que aproveitar o momento efémero.Depois, restam os afectos fundos, inquebráveis (como os nossos pelos nossos Nunos...)

Rocha de Sousa disse...

Ruy Belo, como poeta, sabe bem o valor estético, e o significado
humano, das palavras silêncio e
solidão. No texto de Jawaa, também poeticamente valioso, tocando a so-
lidão e o silêncio dos longos abra-
ços de mútuo contentamento, isso é
dado como conotável com os levíssi-
mos movimentos da borboleta voando.
Mas a verdade é que os abraços são
atitudes por vezes intensas e afi-
nal breves. Como acontece com as
borboletas, seres de curta duração,
mesmo quando as reservamos na me-
mória - a beleza envolvendo o aper-
tado encontro de duas criaturas com poder de partilhar calor afe-
ctivo num abraço, imaginando a sua
permanência, utopia do sonho.
Rocha de Sousa

dona tela disse...

Ou como aquelas flores lá em cima. Lindas, lindas!!

vida de vidro disse...

Tão etérea, tão efémera, essa Felicidade. Mas há a felicidade feita de pequenas felicidades, de olhar com atenção a beleza à nossa volta. Essa pode durar. E levar-nos a abraçar o mundo. **

bettips disse...

Só os abraços. Que se partilham como borboletas em jardim partilham flores.
***
(Sempre achei que uma pessoa ter duas coisas, uma que utiliza, outra que guarda, é cobiça vã para vidas tão breves. Felicidade é também vê-la/fazê-la nos outros. E isto não tem nada de religioso: é a vida natural, em comum, sempre tentada).
Bjinho