sexta-feira, maio 15, 2009

Repousante repetir o rito...rrrs!


«– Eh lá Gonçalo, és?

O pastor desatou a rir.

– Houlá Rosária, eu mesmo! Guarde-te Deus, pimpona!

E logo a voz fresca da rapariga lembrou:

– Não te esqueceu a moda, rapaz!

– Isso esquece ela…! Ouviste Rosária? – Se outra fosse que ma tivesse ensinado…

Neste meio tempo já o Gonçalo tomara a manta e o marmeleiro para ir ter com a Rosária. Mas primeiro perguntou:

– Boto pela ponte ou é tu que vens, ó cachopa? »

Trindade Coelho




Nada mais voltou a ser igual depois das rosas.


Eu nem gosto tanto delas, mas é a cor, o veludo, a perfeição, a arte das pétalas, também o perfume, como aos insectos atrai, assim me deslumbra.


Cresci entre flores, a saber olhá-las, dizer-lhes o nome e fazê-las partilhar das minhas brincadeiras, tanto tempo sozinha. Apertava com dois dedos meninos o fruto arredondado das alegrias-do-lar debaixo das laranjeiras, junto à varanda, que se enrolavam em forma de lagarta depois de espargir pintinhas pretas em redor; apertava os olhos dos cosmos nas faces para fingir de lágrimas, batia os tubos longos da chuva-de-ouro, ainda fechados, na testa, para ouvir estalidos e soprava-lhes para tocar – por isso na Madeira lhe chamam «gaitinhas». Usava as pétalas de cor para pintar as unhas e fazia pulseiras e colares de corolas de flores de que já não recordo o nome. Cuidar das flores pela manhã cedo, regar em fim de tarde, foram rituais na minha infância.


É, pois, repousante, repetir o rito no fim da vida, ainda que seja apenas cuidar de um parapeito.


Eu tenho sempre uma janela florida, mesmo quando lá fora o vento leva as folhas, a geada queima e a tempestade troa.


Porque eu tenho uma janela com o sol da manhã.


6 comentários:

jorge esteves disse...

É bom que assim seja. E não fora assim, sempre sobra a outra janela: a da memória. Aquela por onde sempre se pode colher rosas em pleno Inverno!...

abraços!

bat_thrash disse...

Nada volta a ser como antes, e a autenticidade perde-se até em coisas simples.

Beijo grande.

Justine disse...

Tão nostálgica, a pérola que é o teu texto. E é tão comovente como a criança que foste encontrou utilidade nas flores que a rodearam , para além da sua função estética que hoje perdura!
(acho que é o melhor texto teu que li até hoje)

Rocha de Sousa disse...

Nostálgica, sim. Para mim, certo tipo de nostalgia funciona como
categoria estética. A Jawaa, antes
que lhe fechem a porta da vida, es-
creve admiravelmente na dimensão das suas emoções (as flores calam-nas ou despertam-nas) e tem sempre
aquela doce janela que nos faz lem-
brar um amanhecer contínuo.
Rocha de Sousa

Manuel Veiga disse...

tens uma janela por onde espreitas o Mundo. com sabedoria e beleza...

beijo

Rafael Almeida Teixeira disse...

Faz bem.

Não consigo pensar um mundo sem flores.

Me identifiquei com isso:

"Cuidar das flores pela manhã cedo, regar em fim de tarde, foram rituais na minha infância."

Ainda, hoje, cuido das minhas flores.

Abraços afetuosos.