segunda-feira, fevereiro 02, 2009

Outros brinquedos


– João, és do meu sangue e por isso não te mando matar! Desaparece de Inglaterra! Que eu nunca mais te veja nem ouça falar de ti.

Quando o príncipe saiu entre os dois soldados, voltou-se para Robin e perguntou:

– E tu, a aquém devo o trono e a vida, que desejas?

– Que me perdoes e aos meus homens.

– Estás perdoado, e de hoje em diante todos os meus súbditos serão iguais. É tudo quanto queres?

Robin sorriu e olhou para Mariam. O rei seguiu-lhe a direcção do olhar.

– Gostas dele? – perguntou baixinho à sobrinha.

– Mais do que a vida.

O rei voltou-se para Robin:

– Ajoelha, Robin!

Quando este obedeceu, tocou-lhe nos dois ombros com a ponta da espada e disse:

– Levanta-te, barão de Locksley, conde de Sherwood. É a tua recompensa. E agora, ordeno-te que cases com Mariam.

Robin dos Bosques, novela contada às crianças por Leyguarda Ferreira




É no linho da infância que nos bordam o carácter e o gosto.


Por ventos e acalmias no oceano dos tempos, permanece em nós aquele perfume da criança que fomos, no fazer e refazer das vidas, na construção da pessoa em que nos tornámos. No meio das vagas mais alterosas, quando a chuva cai em pingos de água e ao mesmo tempo troveja o número de desemprego no país e no mundo a que pertencemos, quando tudo aquilo por que lutámos se desmancha em torrentes, restam os sonhos dos meninos embrulhados em recordações. Sejam as bonecas de papel, os barcos de papel, o papel dos livros das histórias que nos povoaram a infância.


Pertenço à geração dos avós, embora não tenha netos. Pertenço àquela geração que não tinha televisão nem computador nem telemóvel nem MP3 e quejandos – nem sei bem o que são, com toda a franqueza. Pertenço àquela geração que ainda tinha tempo de ser criança por inteiro, embora tivesse de perder muito tempo a juntar as letras para conhecer as histórias que vinham no meio delas, embora tivesse de construir o universo em cada leitura. Pertenço à geração que tinha tempo para ir nadar, ir à pesca (primeiro, às minhocas), jogar às escondidas, ao 31 alerta, aos cowboys e aos índios, saltar à corda, à macaca, ao eixo, aos queimados. Jogar à bilha. Andar de bicicleta. Aprender a fazer uma cana de pesca com uma bóia de cortiça, uma fisga para acertar nos morros de salalé.


Ainda hoje um livro acontece como uma história bonita em que somos parte dela, em que o autor nos pega e correndo de mão dada nos enleva até à última linha. Inês Pedrosa preencheu agora meus dias cinzentos fechados e abriu-me o Sermão de nossa Senhora do Ó, trouxe-me o mestre dos mestres e embrenhou-se comigo pelos terreiros de S. Salvador, pelas mães-de-santo dos candomblés, pelos caminhos que Vieira percorreu na Bahia de Todos os Santos, com O Desejo e a Eternidade.


Às vezes basta um amigo, dois amigos, e as histórias chegam, o Brasil misturado pelas férias dos que nos são caros às memórias comuns das tardes no ringue de patinagem junto ao parque infantil dos baloiços que nos embalaram uma infância nunca perdida. Porque achada em cada relembrar.


9 comentários:

Manuel Veiga disse...

"é no linho da infância que se tecem o carácter e o gosto..."

tão bonito. e verdadeiro...

"amorável" texto. o teu...

beijo

Paula Raposo disse...

Belíssimo post!! A minha infância não tem muito a ver com a de agora. A dos meus filhos mais velhos já foi mais parecida. Bicicleta, berlinde, saltar à macaca, jogar ao matas, ler e ver televisão só à sexta e sábado. Gostei de te ler. Muitos beijos.

Rocha de Sousa disse...

Começo pelo Robin dos Bosques que foi leitura remota, em livro e ban-
da desenhada,desenhos do Harold Foster. E Minas de Salomão, que o nosso belíssimo Fernando Bento desenhou. E ainda a maravilha do Gulliver,alguns anos mais tarde, percebendo bem as linhas e as entrelinhas. Além do visionário Júlio Verne, «Da Terra à Lua». A par de tudo, os melhores brinque- dos foram os que fiz com as minhas próprias mãos: arcos e flechas, ressurreição,nos campos de Silves, de Robin. Carros de tração aó pé, trotinetas, barcos de papel e cor-
tiça, moinhos de vento, papel duro e canas espetadas nos morros.Aze- nhas todas armadas em «pauzinhos» de cana e palhetas de calhas finas ou assim, «máquinas» à escala,fas- cinantes, quetrabalhavamnum peque- no desvio da ribeira, aberto e con-
solidado com os dedos meninos.
Que coisa, a infância, as cabanas,
as caracoladas feitas em pleno cam-
po, à porta dos trinta ladrões. Me-
lhor eram os aviões de papel e a substantiva forma que nos permitia
guiá-los em volta e fazer concur-
sos pelo tempo de sustentação.Aven-
turas em lanchas, à Ilha da Nossa Senhora do Rosário.Tiros de canhão feitos de tubos, rolha e água a ferver: o projectil teria de acer- tar num castelo de cartas e era fabuloso quando acertava. As caba-
nas e as faltas às aulas,duas hor- ras com o trinta cabelinhos.Pescar à cana, no rio, apanhar carangue- jos do rio com armadilhas de sardi-
nha, em bolas de rede. Tudo isso e o que já não sei,ou não me lembro agora, tudo educativo e colectivo. Os trinta ladrões (45) que se limi-
tavam a comer uvas no falso colmo da nossa casa, memória de tempos antigos, velhos filmes do Tarzam, e argúcia dos sonhos à margem dos pesadelos dos grandes,pais, avós, vizinhos, jogando à bisca e contan-do histórias dos espíritos.
Bem haja, Jawaa, risquei isto sem
pensar em nada, a vê-la saltando
a geometria no chão, como uma prima
minha, Olga, grande neurologista, que dizia piadas e chorava a ouvir Vivaldi.
Somos de facto de um mesmo tempo,
sem televisão mas com carrinhos de lata ou madeira cujo motor roncava a partir da nossa garganta.
Desculpe ter-me perdido nas escar-pas da memória, sem rigor, mas a
cumprimentá-la pela pedagogia com
que nos vistou.
amigo
Rocha de Sousa

Anónimo disse...

Gsoeti dos ecritoss.
.brigado d todo o descrito. Alembrou-me do jogar ah carica na praia em pistas d'areia, ao berlinde, trepar arvores d fruto,.. tenho menos quarenta anos, contados por mia Mainha.
Tendes sempre outros tantos! Tu queiras!
Esses putos pensarao o mesmo que tu quando eles forem avos?
Curioso talvez ou nada-a-ver, o Zeca tem uma musica entitulada Senhora do O, numa d'aquelas recolhas bonitas qele fez, da musica popular portuguesa. Gilberto Gil eh baiano, foi ministro mas eh mais musico afinal e enfim, ala-q-s-faz-tarde.

vida de vidro disse...

Também sou dessa geração, por isso soube-me muito bem este texto! **

Rafael Almeida Teixeira disse...

Apesar de ter apenas 21 anos, eu sou do meio termo. Conheço o atual. Conheci, também, as bolinhas de gude, pipa, corripil, patinete, corda (pulo e cabo de guerra), pique esconde, polícia e ladrão, dentre outros e outros passa tempo.
O bom, mesmo, era fazer o passa tempo.

Minha geração é uma geração febril, amorfa e boçal.

Infelizmente.

M. disse...

Gostei muito do teu texto. Mas assusta a tua frase no primeiro parágrafo. Sim, é verdade, e por isso mesmo o risco e a consciência do irremediável. Mas sabes, eu acho que não podemos desanimar em relação aos meninos de agora. Eles também encontrarão fantasia nas suas infâncias, só que serão outras, diferentes das que foram, e são ainda, nossas. Porque tem que haver sempre um escape qualquer nas várias etapas do mundo e do ser humano.

dona tela disse...

Andamos para aqui a fazer catarses, é o que é.

bettips disse...

Uma roda de amigos a pensar e relembrar, sorrindo, a infância. Sou eu por aí, algures, mesmo que continentes existissem separados!
Bjinhos