sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Angústia



Por interstícios das malas abertas de quando éramos
crianças gritam as bocas sem nenhum eco
das bonecas. Criaturas fictícias, escalpelizadas
e sem tintas, de ventre oco. Mas o mortal
lugar do coração está ainda a palpitar.
O bojo do peito de celulóide, como o meu,
pede-nos perdão pela saudade que nos devora.
 
Fiama Hassa Pais Brandão


As inquietações embrulhadas no sono alisam as faces, aquietam as corridas apressadas do sangue nas veias, caminham dóceis no espaço.

Com a naturalidade do sonho, a varanda larga da fazenda exposta ao sol da manhã, a trepadeira de campainhas de fogo deixando caminho às andorinhas suspensas da corda alta, alisando as penas, chilreando a espaços. As sardinheiras no parapeito continuavam lá, hastes acrobatas, poucas folhas, uma flor aqui e além. Branca, rosa, salmão.

E o armário de gavetas, pintado a branco-marfim, as ferragens antigas. E aquela mesinha alta e redonda, outrora suporte de samambaia, agora coberta dum pedaço de pano em quadradinhos azuis picotado pela mãe.

O filho surgindo, banhado de fresco, cara rasada, pendurando a toalha e assustando as andorinhas. «Mainha, tu é que pintaste o armário?» «E então?» «Lindo, está um show!»

Trincou uma maçã e foi-se à sala de portas escancaradas à manhã. A irmã passava os dedos sobre o fogão novo, onde duas empregadas preparavam o almoço, ou pequeno-almoço talvez. Asseadas, de lenço e avental brancos. Perguntei «onde estão todos

Não obtive resposta – não esperei por ela – e desci os breves degraus para o quintal, sob as laranjeiras, para a horta, para a cozinha velha, cada vez mais apressada.

– Manuel! Manuel? Velhote!?

Respondeu-me o vermelho-sangue da buganvília cobrindo já o telhado a capim, descoberto aqui e além, lá dentro o forno sem porta, teias de aranha subindo pelos cantos, chão de terra negra. Nem os cães cirandavam por ali. Nem viv’alma. Voltei as costas, o rosto molhado, olhei a vala logo ali.

Só ela era igual, os fios de prata correndo, o sol brincando neles.

Acordei.



5 comentários:

Paula Raposo disse...

Excelente. Que posso dizer mais? Muitos beijos.

Manuel Veiga disse...

gostei muito do texto.tecido de sentimentos belos e memórias...

beijos

Justine disse...

Sonho simultaneamente doce e acre! Mas depois do sonho há a memória da vivência, há o sonho acordado, dos que nos dão raízes para continuar verticais.
Muito belo

jorge esteves disse...

Sonho escuro, cor de café, suor húmido com entardeceres de cacimbo...

abraços!

M. disse...

Lindas estas tuas memórias.