quinta-feira, julho 10, 2008

Navegar é preciso


Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;
não me bandeio (que eu já vi esse filme...)
com gerações perdidas.
 
Mas senta aqui, mendigo:
vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!
 
E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia...
 
Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p'ra morrer?
 
Gosto deles assim, tão sem futuro,
enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrançais
e os politichiens si habiles, si rusés, 
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!

[…] Saber viver é vender a alma ao diabo,
a um diabo humanal, sem qualquer transcendência,
a um diabo que não espreita a alma, mas o furo,
a um satanazim que se dá por contente
de te levar a ti, de escarnecer de mim...
 Alexandre O´Neill



A marcha mais lenta no espaço – e mais veloz no tempo – do fim da estrada em que perfazemos os dias, deixa lugar para a contemplação do caminho percorrido.

Cada um de nós, como um insecto, cumpre as metamorfoses e constrói o seu casulo, mais ou menos tecido, mais ou menos perfeito na sua forma. Seja na aridez do deserto ou na humidade das margens frondosas do rio ou ainda na fundura das neves ou dos mares, o ninho foi tomando forma. Viver no campo, na escarpa da montanha alta olhando o vale ou na grande metrópole novaiorquina, cada ser se enrola na sua teia de seda, algumas de janela aberta por uma simples máquina, passível de ser desligada ao menor sopro de vento.

Mesmo quando a borboleta acontece em insecto perfeito, o caminho difere porque as asas também, e se o perfume apela à distância, nem sempre o vento corre de feição. Então é preciso ainda lutar quando os olhos pintam de azul as flores, de vermelho os céus e de verde as chamas. Quando as lágrimas toldam o riso e se abraça o sonho de que já não se acorda.

Assim é o caminho dos homens e dos bichos.


4 comentários:

Manuel Veiga disse...

é a única saida - lutar.lutar sempre.

ainda que as flores se pintem de azul...

brilhante. invejável texto.

Justine disse...

Lutar é preciso sempre, nem que seja pelo sarcasmo, como fazia o ONeil.
Abraço

M. disse...

Claro que gostei muito...

Rocha de Sousa disse...

O'Neil não era daltónico mas sabia que não identificava todas tonali-
dades de uma cor. Também há um pin-
tor que pinta o mundo a preto e branco,pois só o vê dessa maneira. A diferença entre um verde escuro e um verde claro será traduzida, presumo, por duas graduações de cinzento.Dizem que olhar esses quadros é ao mesmo tempo descon-
fortante e fascinante. Quando a or-
dem do mundo se reverte para além do caos, quem sobrevive pode sui- cidar-se ou assumir a sua irracio- nal vontade de viver.
É assim que um «hrético»,perante a
vitalidade deste texto,seja capaz de o considerar brilhante e invejá-
vel.
Eu até acho que sim, como se depre-
ende do horror que habita o meu co-
mentário. Lutar, porque não? É o que faz o pintor que só reconhece o preto e e branco, além das mistu-
ras dos dois materiais. Claro que essa luta é irreacional num mundo
que nos nega. Mas somos nós quem inventa a realidade, criadores pa-
ra nada mas criadores. através de uma consciência alargada onde tudo pode acontecer e tudo pode ser aí esplendoroso enquanto durar. Há quem se conforme com a breve dura- cão desse jardim a preto e branco.
Rocha de Sousa