quarta-feira, janeiro 14, 2015

PERDA


«... Chorei em frente a ele, e choro aqui em frente de todos os que me lêem. Não quero saber se sou piegas. Não tenho medo de parecer ridículo: o meu amor pelos animais será sempre maior do que isso. Morreu-me o gato, morreu uma parte importante da minha vida com a minha mulher. Vou ter de habituar--me. Não sei se me habituo.»

Rodrigo Guedes de Carvalho




Mr. Binx era um senhor.

Manso, cordial, majestoso. Chamavam-lhe Lord Binx, tal a dignidade com que se investia da mesma placidez quer perante a paisagem branca da neve que se acumulava do outro lado da janela quer entre as orquídeas que trazia o sol quente das primaveras.

Do aconchego do fundo da cama nos invernos longos, erguia-se com pontualidade inglesa para a primeira refeição, que exigia com falas doces a quem com ele partilhava a vida. E era compreensivo. Sabia esperar, vigiando a chegada de cada um ao fim dos dias solitários pela casa que deixavam à sua guarda.
Mal os primeiros bolbos de jacintos e narcisos furavam a neve, fofa da temperatura mais amena, abrindo cores a anunciar o verão, Mr. Binx preparava a agilidade para os primeiros passeios de fim-de-semana nos jardins, a quedar-se em esperas por algum chipmunk incauto ou esquilo ou passaroco, o verão a apetecer-lhe já, num gozo antecipado.

Era vê-lo então, nas noites quentes dos julhos, escutando os recantos mais secretos, farejando os odores pelas verduras e flores, já a água cantarolando no pequeno regato, límpida e fresca. Manhãzinha e Mr. Binx, cansado da estúrdia da noite, sentava-se com o seu porte habitual na pedra grande junto à soleira da porta das traseiras, até que um assobio lhe dava o sinal para recolher a casa, para o descanso merecido, enquanto os seus irmãos humanos iniciavam a labuta diária.

Apreciava sobremaneira os passeios de fim-de-semana prolongados ao longo do lago Ontário para a pesca. Novos lugares, novos cheiros, espaços largos, a segurança de escutar o assobio quando já se sentia perdido, embriagado pelos ventos e odores insuspeitados. É que os anos iam passando, o corpo a pesar, e os sentidos a mentirem cada vez mais.

Longe os tempos da juventude, quando o seu amigo o deixava liberto em casa térrea, entrando e saindo a seu bel-prazer, indepententemente das estações do ano. Mais elegante, mais musculado, a neve não o impedia das aventuras no exterior, encontros por vezes desagradáveis com os pouco amistosos racoons. Porém o tempo não perdoa e não lhe deu mais tréguas. Bem sentiu a impotência de quem não quis deixá-lo abandonar este espaço sem luta. Só que o destino é inexorável e ele saltou para outra dimensão.

Mr. Binx, Lord Binx, era tão só um gato.

Um gato que partilhou durante dez anos a vida de um ser humano exilado, o esteio que o não deixou soçobrar na solidão de um país distante, desconhecido, frio, agreste. 


Por isto será para sempre recordado com gratidão, como um nobre, Lord Binx!


5 comentários:

Anónimo disse...

E, ainda bem, foi o desgosto da perda de Lord Binx que me fez vir aqui (ah...o tempo, esse ladrão!). Reler e ler a descrição tão comovente "de como um gato foi companhia" na distância. E ficar contente por (te)conservares aqui, com essa aptidão para os nossos clássicos da bela língua nossa, os apontamentos cheios de sabedoria/saudade. Uma nostalgia suave.
Para te mandar um abracinho, em breve os junquilhos...
B

M. disse...

Muito belo este teu texto.
Um abracinho.

Manuel Veiga disse...

amei o texto

beijo

Ana disse...

Jawaa
que coincidência. e triste.
re_voltei hoje ao meu "Fios" e cliquei no teu nome para ver se ainda tinhas o blog.
também eu, na 2ª feira passada, perdi o meu Sr. Mim.
entendo perfeitamente o que estás a sentir.
por favor, diz-me como posso contactar-te (e-mail, FB se o tiveres).
beijos

Rocha de Sousa disse...

Que bom que é reencontrar, depois de vários afundamentos, este belo espaço, cheio de alma e de um sentimento real, que faz sorrir e nos puxa as lágrimas.
Obrigado, Jawaa, por me permitir falar com este «além».

João