domingo, março 24, 2013

FELICIDADE ERA DANTES


No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia
Clarice Lispector


 A felicidade é, no melhor sentido gramatical do termo, um nome, um substantivo abstracto (terá outro nome agora, as nomenclaturas mudam como mudam os nomes das instituições, dos ministérios, como se não houvesse nada importante para estudar, para realizar, como se mudar a designação fosse suficiente para melhorar o que quer que seja) por maioria de razões. Consegue ser mais abstacto do que liberdade, pois esta ainda se pode, em certos casos, concretizar, alguém que deixa de estar dentro de um estabelecimento prisional e passa a viver em liberdade ainda que condicionada a outros muros.

 A felicidade é um estado intermitente de vida, quando se está dentro dela não se sabe o que se experimenta, muito raramente se reconhece, e quando se olha para ela já acabou, é o agora que entretanto já foi substituído e logo se reconhece pretérito. Identifica-se melhor no passado, e não porque julguemos hoje ter sido felizes numa determinada época ou situação, nada disso. Apenas quando em momentos únicos e raríssimos um sentido nos desperta para uma sensação anteriormente experimentada que nos acode de repente, um som um sabor um odor, qualquer coisa de inefável que adeja bem dentro de nós, nos faz estremecer de emoção, tão breve que logo se desvanece, um halo de felicidade que se procura recuperar sem êxito.

Não sei se a felicidade é tão importante quanto se julga, não sei se a felicidade é alguma coisa que deva perseguir-se porque ela não tem forma nem ocupa espaço. É algo de etéreo porque só existe na imaginação, tem uma duração imensurável na brevidade ou permanência, é esquiva, é preconceituosa, não convive com a vida, tira-nos dela. Se e quando consegue olhar-se para ela, não pode ver-se mais nada, ela preenche tudo, não permite misturas, é como o nevoeiro que não deixa a luz atravessar. Porém nunca se demora no mesmo lugar por muito tempo, basta um vento breve de realidade e a felicidade por magia desaparece, simplesmente se apaga.

Pode assim dizer-se que a felicidade nunca está presente. Daí a procura incessante dela, a necessidade humana de melhorar o presente a cada passo, quantas vezes a noção correcta de que ela se esvai entre os dedos, era tanto o que tínhamos, a luz, mais calor, a chuva a mimar os campos, as flores abrindo na magia das cores, os pássaros a louvar a primavera. Agora faltam as abelhas, a comida escasseia, os lobos atacam os rebanhos, outros uivam.

Há que enfrentar a peleja e repor o equilíbrio.


2 comentários:

Manuel Veiga disse...

não existe felicidade - apenas momentos felizes...

(desculpa o lugar comum)

o texto como sempre - delicadíssimo tricot de emoções

beijo

Mar Arável disse...

Vagarosos instantes