domingo, março 03, 2013

DECLIVE



Há uma luta encarniçada contra a natureza, que quer cumprir o seu dever demográfico, e a ciência que nos quer imortais e não deixa. Tanta moléstia útil para dar espaço aos humanos. Tuberculoses, diabetes, pneumonias, bexigas doidas e outros e outros benefícios para larguesa do território. Tudo abaixo. De vez em quando a Natureza arranja uma doença nova e é uma alegria nela para o equilíbrio da humanidade. Mas há logo um tipo que lhe trama a programação. Então ela recolhe-se de novo a si e lá lhe salta outra invenção para pôr ordem nas coisas.



Vergílio Ferreira in «Na tua Face»




Não me assusta a morte dos velhos porque esse é o caminho deles. Constrange-me sim, o sofrimento a que muitos estão ou estarão sujeitos antes do desenlace final e isso é um assunto que me diz respeito e me preocupa. 
Porque o sofrimento físico não é apanágio dos velhos como parece ser aceite, o sofrimento chega sob a forma de uma qualquer doença numa qualquer idade e nunca é de justiça. Ninguém merece, seja em que idade for, dar de caras com a morte pelo caminho de uma dor prolongada. E as panaceias médicas para a mais recorrente das doenças actuais são doses de sofrimento atroz para nem sempre conseguir ultrapassar a doença em si. Tumor, cancro, câncer, neoplasia, qualquer coisa descrita sumariamente como células enlouquecidas comendo células, destruindo, destruindo-se.
Como este país enlouquecido, comendo, comendo-se.
Nem sempre o declive – na folga do peso da pedra – é fácil e o caminho brando e sem escolhos. Ao contrário, a poeira acumulada escorrega sobre as pedras soltas, não deixa florir o campo, as folhas amarelecidas confundem-se na cor dos répteis, o perigo é tão presente que deixa de sentir-se. A temperatura do ar aumenta com as batidas do corpo e o suor desliza pelo rosto frisado pela secura do tempo, dos tempos. Só a chuva lava e abranda o cansaço sem voz, apagado nos anos contados sobre o rochedo pousado no fundo do vale, na beira do rio manso que passa ondeia se esconde na curva ao longe.  

Cantemos sim, enquanto há voz e memória para repetir a letra.

1 comentário:

Manuel Veiga disse...

cantemos, pois! resgastando a Memória profanada...

beijo