sábado, março 31, 2012

Lírica do Desassossego

Foi publicado este mês um novo romance de Rocha de Sousa, um romance diferente, na semelhança do que nos habituou a sua escrita sensível, de um realismo que leva à reflexão, onde os espaços e as pessoas têm nome, onde tudo se abre aos nossos olhos como o argumento de um filme que só ficou gravado em palavras de pintura por vezes surrealista, de que deixo aqui um excerto.


«Morri ontem, com a boca cheia de palavras e os olhos tapados de imagens […]

[…] Estou a caminho do cemitério, não sei onde, mas estou morta e sinto-me tranquila. Os anjos são masculinos ou não têm mesmo sexo? Minha mãe percorria as senzalas e procurava, de uma conversa vulgar, criar sinais legíveis sobre a vida, a família, os filhos, a história dos povos, o seu papel no mundo. Era um catolicismo sem pompa nem circunstância, não dependia da missa nem de outras liturgias. Talvez ela tivesse reencarnado de um verdadeiro missionário.
Agora sim, estão a baixar o caixão, nave estreita e em madeira, que entra na terra fresca da cova e aí fica, autónoma. Choram não sei bem onde. Pazadas de terra começam a cair sobre o meu rosto protegido. Mas é como se a minha boca fosse bloqueada, completamente entulhada de papéis e terra. Nos olhos, agora, só passam, contra o escuro, imagens fragmentadas de gente conhecida, familiares, tios, primos, amigos correndo, ao longe, como se holofotes rasgassem a noite e mostrassem, só por instantes, um rosto espantado ou um animal a correr. Nesse minuto nunca vi nenhum anjo, nem pessoas que conhecera através de velhos retratos.

Pela primeira vez, em muitos anos, não sinto o corpo. Esta suspensão é irrepreensível. Será este o lado sensível da alma? Apenas tenho a certeza de que morri ontem. Ou hoje de madrugada.»

1 comentário:

Manuel Veiga disse...

grato por dares a conhecer.

vou ler o livro com interesse.

beijo