domingo, setembro 11, 2011

Pedaços


Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
António Ramos Rosa

 
Não há tempo perdido quando se encontra um amigo e as horas passam. 

Quando se perde um amigo, encontra-se o tempo que nos sobra depois dele, o tempo a mais a que temos direito para pensar sobre a razão que nos leva a estabelecer laços que perduram no tempo, sem que a distância, o eventual afastamento, nos faça perder a memória dos afectos. 

Não foi sem razão que Cícero escreveu uma obra inteiramente dedicada a este impulso da natureza que leva ao estabelecimento de laços de amizade. Deu-lhe um conceito moral: a amizade nasce da virtude e só pode existir entre os homens bons (uiri boni), não no sentido idealizado e absoluto, mas na perspectiva da sociedade romana: dotados de virtudes como a fidelidade, a integridade, o sentido de justiça, da liberalidade e da constância.

Porque se alterou a sociedade, também mudou a perspectiva dela, mas mantém-se o conceito de que a amizade cresce entre homens dotados de valores como a lealdade, a rectidão, a generosidade, que, em algum momento prolongado no tempo, coincidiram em projectos de trabalho norteados por objectivos comuns. 

Eu perdi um amigo generoso com o qual partilhei vinte anos cruciais da minha vida de trabalho. São vinte anos de memórias numa casa comum, serões repartidos de conversa amena, sonhos nascidos, alguns frustrados, outros concretizados, alargados depois por mãos que cresceram connosco. A obra erguida desde então existe e permanece. 

Ficaram as lágrimas dos amigos que ficaram.

Ficámos ainda nós. 

2 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Claro que ficamos nós, mesmo que brevemente, porque a morte e a perda nem sempre afastam os ami- gos com grandes intervalos. Seja como for, minutos de um facto assim, logo a obra e o eco do que
se torna de todos, tudo isso fica.
O primeiro companheiro que perdi em Angola, talvez se lembre, ain- da se lembre, ainda nem sequer falara com ele.Ficou sobre o jeep depois de um erro involuntário do
do médico. Essa é uma estranha
perda, num «teatro» daqueles. E meses depois, um outro, um homem
daqueles que abraçamos de alegria
e reconhecimento. Morreu cercado pelo fogo, apesar de toda a sua destreza e coragem. Fizemos um lu-
to patético e longo, quase sem falas. Já conto com muitos vazios
desses, entre amigos e família.

Nilson Barcelli disse...

Os amigos são intemporais.
Gostei do teu texto, excelente.
Jawaa, tem um bom domingo (ou o que resta dele...) e boa semana.
Beijos.