quinta-feira, setembro 01, 2011

Vastidão



Mas ia-te a dizer eu que era a hora em que a morte – já não sei o que ia a dizer sobre a morte. Talvez que ela é mais plausível de noite pela imensa solidão. Já me vou acomodando, mas mesmo assim. A hora em estamos a sós connosco, com esta coisa terrível que somos nós por dentro vivíssimos e não há público nenhum para nos ajudar. A hora em que tudo é imenso como um olhar cego.
Vergílio Ferreira in «Em Nome da Terra»


Há dias assim. Terão sido imensos, cheios, nem provavelmente plenos de contentamentos, pejados até de melancolias, de tormentos, contradições, revolta, mas intensos, cheios de vida. Agarrado a ela e tornando-a a razão dela própria, o ser enquanto pulsar, espírito e matéria juntos, sentindo bater ao lado uma outra presença, nela pousando o olhar como fera lambendo a cria.

Há entardeceres assim. É o dia a não querer deixar a terra, desfazendo-se em cor, gritando que não, que ainda precisa de estar ali. Mas é inexorável o rodar do planeta e chegou a hora do descanso, a noite devagarinho subindo pelas sombras, dando lugar aos que fazem dela o seu reino, adormecendo uns, acordando outros ruídos inquietos, fugazes ou repetitivos, a acender a vida que brota com a mesma intensidade numa outra perspectiva.

Há madrugadas assim. Cheias de magia, em que tudo acontece num repente, as recordações e as saudades e as presenças, e logo a vida retoma a normalidade perdida. O primeiro dia de Setembro deu à vida minha Mãe, faz 92 anos. De repente, recordo que deixou a minha companhia precisamente com a idade que tenho hoje. Viveu muito? Deveria ter vivido mais tempo? Viveu o tempo que teve. Sei que viveu um tempo que não queria, mas também sei que ficou por viver um tempo que ela gostaria muito de partilhar comigo.

Acabado está o tempo dito de férias ainda para quem as não teve, não mudou de lugar, não percorreu caminhos, não cruzou oceanos nem deu pela chuva que passou. Mas foram férias profícuas enquanto tempo de encontro com a paz interior. 

2 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Entre o entardecer e as manhãs pro-
missoras, o filho interoga-se sobre
a vida através dos anos que a mãe teve outrora e ele tem agora:a paz dos últimos tempos pode decorer as-
sim, na memória de alguém que gerou
o mundo da nossa vida, tendo esta o
tempo de uma espera sem desencanto
nem mistério, um calor de afecto à
flor do que nos disse, poeta da an-
gústia, Vergílio Ferreira.

Manuel Veiga disse...

texto de uma serenidade vibrante.
como se o tempo fosse sinfonico...

beijos