quinta-feira, maio 05, 2011

Determinação


     Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino.
     Ah, mas estavam «rotas as fontes do grande abismo, e abertas as cataratas do céu»! E homens e animais começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus! Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos comandados pela sua implacável tirania.
     Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço foi devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca, que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.
 Miguel Torga in «Bichos»


 Quase me sinto perdida enrolada por ventos marés, circunstâncias do tempo marcadas por relógios humanos sem alma, rodando no mostrador. Passando sem ver uma e outra vez sobre os algarismos gravados a negro, quietos parados, iguais na noite e no dia, no escuro e na luz.

O relógio cá dentro não sabe das horas mecânicas, certas, pausadas, soadas, marcadas pelo arco do pêndulo. O relógio cá dentro vive dos sons das madrugadas, quando a noite ainda cobre os telhados, as sebes, os muros pintados lavados, a casa em ruínas, o musgo lavrando nas fendas, as silvas espreitando à janela.

O relógio cá dentro vive dos sinos que soam repicam que dobram finados, vive das noites abertas ao sono e ao sonho, ao som dos beirados pingando a chuva que o céu entorna. Vive dos passos nos jardins nas praias de sol dos dias fechados a lacre – como as cartas antigas. É um relógio sem mostrador, sem ponteiros rodando, sem algarismos a deslizar, sem corda sem pilha, sem corrente sem caixa sem pulseira.

É uma arca antiga onde palpitam fragrâncias de rendas que fincam os pés no desandar da maré. O relógio de dentro não é de metal, não é frio, não conta os minutos as horas. O relógio cá dentro escuta, vê, sente, sofre, seduz, vibra até ao último crepitar de chama, estremece até ao último pulsar.

3 comentários:

Justine disse...

Vivemos dias de voragem, de vórtice desenfreado que nada tem a ver connosco, e tu di-lo muito bem!

Rocha de Sousa disse...

Quebrando o texto, o seu tempo, a
sua continuidade, a voz de alguém
nos diz e nos pensa pelo espaço a
mover-se ou indicia o saber da pas-
sagem das horas no interior dos or-
ganismos vivos, que têm as suas ho-
ras próprias,o seu tempo intrínse- co,vaga de linhas ocultas que de-terminam o indeterminável, indicia-
ção das vagas aspirações de vida e do seu próprio espaço, do seu pró-
prio fio da vontade de ganhar mais tempo do que o tempo da vida maqui-nal do que a estranha duração dos orgãos,a brevidade que nos leva ao cutelo da morte.
Alguém se pensa do vento e das ho- ras exteriores para se conhecer na sua dinâmica interior, relógio fei-
to das metamorfoses propiciadas pe-
los organismos pré temporalizados:
ralizados: o corpo a linha em si,
misteriosamente, a inexorável pas-
sagem do tempo, o caminho para a última pulsação de si.

Manuel Veiga disse...

... com pêndulo que é o balanço do coração!

beijo