terça-feira, outubro 05, 2010

Res publica


«Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.»

Bernardo Soares,  in O Livro do Desassossego

 

Gosto das vozes sem tino sopradas na rouquidão dos dedos por onde escapam a solidão e o cansaço, quando os homens se perguntam onde o caminho é mais breve, onde o rodopio cessa, onde os leva a expansão do universo que são. Gosto das vozes serenas, pensadas, escritas com alma e cautela, como a suavidade das manhãs. Gosto das vozes de ledas ironias onde a perspicácia impera. Todo o caminho é redondo, não tem princípio nem fim, todo o recomeço é pausa, a ilusão da lua que se não vê mas permanece.

Na evasão necessária os caminhos são múltiplos, Tchaikovsky ou U2 que importa, o silêncio da noite também chega neste debruar de Outono, na limpidez que a chuva propicia, no vento que traz as folhas que arrasta as cores esmaecidas na beleza que lhe compete. Há sempre as palavras que se querem dizer, os gritos maiores, os sussurros, tudo cabe no escuro sem lua nem estrelas, quem dera longe os candeeiros do progresso. Há sempre as palavras dos outros, as palavras actuais, as palavras antigas, as palavras que nos embalam porque nos saem do peito como respiração nossa, como se todo o sentir do mundo estivesse ali, naquele momento, bem dentro de nós.

Mas há também as palavras do momento. E o momento hoje é a celebração da República. Com maiúscula, sim, como se a república não fosse apenas a res que respeita a todos. Gosto pouco que se celebre alguma coisa que nasceu sobre os corpos de mortos inocentes, apenas isso, nada contra a República – ainda por cima representada por uma figura de mulher. Não sou monárquica pela simples razão (democrática) de ter eu também direito à nobreza. Não aceito que alguém nasça predestinado a representar um povo apenas pelo berço, pelo sangue, quantas vezes impuro. Prefiro a escolha da razão, afinal eu tenho imagens de probidade daqueles que me deram a oportunidade de escolher para Presidentes da República do meu país.

Se este país do fado não consegue sair das vielas, não é pelo facto de ter um rei ou um presidente, isso não muda nada. Só iria incentivar, adulterar ainda mais a informação que nos chega em catadupa de factos não sérios, não importantes, não pertinentes. A república, a democracia, a monarquia que possam desejar alguns, não tem lugar neste país fantasma, onde os condenados pelos tribunais saem em liberdade porque são médicos, porque são juízes, porque são jornalistas, porque são embaixadores.

Cada um de nós tem de comportar-se como rei de si próprio, da sua razão, da sua honestidade. Direi como Almada Negreiros «Eu creio na transmigração das almas por isto de Eu viver em Portugal.»

3 comentários:

Rocha de Sousa disse...

O cientista Damásio comparou a consciência, coordenada pelo cére-
bro, como uma orquesta ampla e com-
plexa, que toca sem pauta, ou a in-
venta a cada instante, sendo regida
por um maestro criado e transforma-
do por ela.
Então vêm as palavras desse dom
superior, estas que vejo relem-
brando a República, cem anos con-
vocados apesar das sombras.

M. disse...

Gostei muito de te ler.

Manuel Veiga disse...

escrita elegante. a tua.
mesmo quando num pormenor ou outro possa discordar...

sempre estimulante ler-te.

beijos