segunda-feira, outubro 11, 2010

Histórias


A pior pecha era a melancolia. Dava-lhe para a contemplação e passaria horas, sozinho, a olhar para uma bagatela do mundo, outras vezes para bagatela nenhuma, perdido nos meandros interiores, tão complexos e emaranhados que nem ele saberia dizer por onde lhe vadiara o juízo. Fora disto, revelava a mais completa indiferença pelas coisas do morgadio. Embora se soubesse o primogénito, os negócios da Casa Grande não lhe acarretavam a mais leve dor de cabeça. Pessoalmente, também pouco lhe importava andar roto ou bem vestido, comer do bom e do melhor, ou jejuar a pão e água.
Aquilino Ribeiro in «A Casa Grande de Romarigães»

 
- A Carochinha pensou «ai, como é que eu vou poder casar com alguém que tem esta voz tão feia ão, ão?» Não quero, não…
- Já sei, Voinha, ela quer casar com o João Ratão!
- E já sabes o fim da história?
- Já, gosto mais que contes aquela da formiguinha…
- Aquela que ficou presa na neve?
- Sim, mas quero que a formiguinha diga assim: tu qui éss tão fortxi, disprendxi o meu peziiiiiiiinho…!

Está tudo do avesso. Ou talvez não, afinal as crianças só querem ouvir o som que lhes faz sentir a diferença entre o bicho e a pessoa que lhes conta a história, tão simples quanto isso. Já não há crianças atentas como antigamente, são muito mais exigentes porque a TV já lhes mostrou tudo, antes ainda de saberem articular palavras. Nada é novidade, nada é igual ao que ouvem dos avós, eles emendam-nos porque a história que conhecem é mais bonita, mais colorida, mais activa, mais divertida, já não lhes basta o som da voz, muito menos o recorte das letras.

Depois, os velhos já nem sabem contar histórias, perderam a fala, eles passam os dias à porta de casa sentados, as muletas arrumadas ao lado, ou arrastando-se nelas pela ladeira acima, os olhos presos ao que já não são capazes de fazer, sem ninguém que lhes dê uma palavra, que lhes conte as histórias que agora gostariam de ouvir, outra vez meninos. Há os que passeiam ao cair da noite devagar, nos dias quentes, mãos atrás das costas, afagando a solidão com a luz da lua quando ela tem a face aberta, outros atirados para os albergues a prolongar o que não é nada, suspensos das pílulas que engolem a cada refeição, esquecidos do nome, dos nomes, os rostos apagados para não verem o espelho dos que comem com eles à mesma mesa. E há aqueles que ainda desejam contar aos filhos a história antiga do velho pai que rasga a manta ao meio para dar ao filho, no último momento, quando ele vai deixá-lo caridosamente na montanha, mas os filhos, ou não aparecem, ou não têm tempo para ouvir histórias. Têm de viver depressa todos os momentos onde não cabem os pais.

Onde não cabem os próprios filhos.
 

3 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Perderam-se as grandes casas, as
grandes famílias, a classe média
que já superara os remediados, os
que acorriam a duas assoalhadas e
um filho para amostra. Ainda tive
uma avó que me contava histórias.
Mas acabou por gostar mais das mi-
nhas, do meu jeito de lembrar pes-
soas e dispensar os animais.
Fico suspenso, fascinado,talvez
sentindo um pouco de mágoa, quan-
do vejo aldeias com cinco pessoas
idosas, na mais severa continuida-
de, sem filhos por perto, nem ne-
tos, apenas as ovelhas, cada qual com o seu nome próprio.

Manuel Veiga disse...

sabes quanto aprecio ler-te.
mas os efeitos estéticos do blog e a cor da letra não me permitiram ler o texto.

quem fica a perder sou eu, bem sei...

beijos

M. disse...

Pois, a vida está a tornar-se voraz. Mas eu continuo a achar que cada um encontrará o seu caminho ao encontro de si mesmo e da Beleza.