segunda-feira, outubro 25, 2010

Fragilidade


Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in “Obra Poética”



Já não vou ao mar. Já só a areia me afaga os pés numa carícia morna, o olhar preso na onda breve que se chega de manso na maré vazia, quando o sol cruza menos alto a esfera azul que nos cobre.

Porém o mar é o mundo em que ainda mergulho inconsciente, tudo o que me atrai e assusta, dentro de cada onda quebrada um pedaço do que sou, rolada em caracol na areia mansa, espalmada contra o corpo da praia, a desmaiar em espuma com o calor da terra. Já antes o mar cresceu e rugiu nas pedras, os ventos colheram salpicos de sal trazidos do mar alto em vagas rugindo cavalgadas de esperança, já a preia-mar cobriu as pedras irisadas, as conchas coloridas, já desfez os castelos de areia, subindo devagar, uma e outra vez até desfazer e alisar de novo a areia na praia.

A rebentação das ondas é o lugar de todos os acontecimentos, tão breve no tempo e tão forte, tão intensa, tão múltipla e fecunda depois da caminhada longa e poderosa pelos oceanos, que a sua explosão é um prazer de deuses. Poderia ficar ali, eternamente a olhar, a contar as ondas, uma atrás da outra, a vê-las espojar-se na areia e rolar-se e de novo encrespar-se e atirar-se nos rochedos.

Já não é tempo de ver a noite chegar, quente, só ouvir o mar e as reverberações que se misturam ao infinito do mundo estelar, o espaço é outro. O Outono das zonas temperadas arrasta um pincel de cores sem nome por sobre as árvores em volta, arrasta as folhas mortas cobrindo o chão de outra beleza, mais calma e mais doce.

São os caminhos do tempo.

4 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Já não vai ao mar, mas pode trazer
da memória essa verdade impresvista
de que «a rebentação das ondas é o lugar de todos os acontecumentos»
Há, aí perto, um lugar.
Há outra época de espera, esse Ou-
tono temperado, outro espaço, fo-
lhas amareladas tombando sobre o chão, juncando-o largamente.
Em suma, ondas repetindo-se e folhas repetidamente caindo, isso
é uma bela imagem do tempo.

«São de facto os caminhos do tempo»

Justine disse...

Sempre com uma beleza ímpar, os caminhos do tempo, sejam na terra ou no mar...

bettips disse...

Um dia destes fui ao mar: ver como foi bravo e castigador para as dunas. E vê-lo, recolhido num sorriso de prata, como se nada fosse com ele! E rolar seixos de cores, espreitar a solidão belíssima da praia. Por mim, o veria sempre, de longe que fosse - acalma-me, aquela constância.
Ontem fui a essas cores: saudar o Outono, como o sinto.
Nos caminhos do tempo me perco: e como dizia hoje à J. como éramos pequenitas quando a memória era uma plasticina.
Mas como dói, tantas vezes, moldar as presentes memórias ao momento que se vive agora. Um travo, um trevo esquecido entre folhas.
Bjinho

Manuel Veiga disse...

como o marulhar das ondas. em sinfonia de búzios...

belíssimo. tudo

beijos