sábado, agosto 07, 2010

Pássaros


 
Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoas, chuvas, escuros – isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efectivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.
Álvaro de Campos



 Ando de roda dum livro que, por sua vez, anda à roda de Flaubert.

Gustave Flaubert, o homem que deu vida a Mme Bovary, o homem que divulgou o segredo guardado de todas as Bovary que povoam o lado feminino do planeta porque o outro lado o possibilita ainda, ou, quem sabe, porque nem eles nem elas alguma vez leram Flaubert. Mas não foi sobre esta personagem poderosa que trouxe aqui Flaubert – e digo poderosa, porque Emma Bovary foi tão perfeitamente concebida que viveu para além da sua morte no livro, atormentando o resto da vida do seu criador. Ele escreveu muito mais, mais e melhor, mas ela tomou conta dele, misturou-se com o seu nome, absorveu-o.

Flaubert, ao que leio, tinha uma grande simpatia por papagaios, para além de canídeos e outras espécies de animais, nomeadamente ursos, de que possuía uma pele servindo de tapete em sua casa. Um dia leu uma história de alguém que perdera a sua amada e se tornara misantropo, vivendo os seus dias com um papagaio que repetia o nome da mulher que perdera e com isso se mantinha vivo. Quando o papagaio morreu, o homem perdeu a razão. Começou a imaginar-se ele próprio um papagaio e repetia grasnando o mesmo nome de mulher, enquanto se empoleirava na mobília e batia os braços como asas. A família pretendeu interná-lo num hospício e só o conseguiu construindo uma enorme gaiola, onde ele entrou, fascinado.

Flaubert tece considerações sobre orgulho e vaidade numa carta a Louise Colet, a «sua musa», dizendo que o orgulho é um animal feroz que vive só e vagueia pelas grutas, enquanto a vaidade é um papagaio. Há diferenças, realmente, entre uma palavra e outra, pena é que os papagaios humanos de hoje não se assumam pássaros, para que se pudessem engaiolar como o tal conhecido de Flaubert. 

2 comentários:

Justine disse...

O prazer imenso de viajar dentro dos livros. De pensar com os livros. De entrar no espírito dos escritores.
Como eu te entendo bem!
Abraço

Rocha de Sousa disse...

Aproveita para agradecer os comen-
tários astutos que deixou nos meus
últimos post.
Este seu texto mostra, de facto, a sabedoria com que desfibra o senti-
do das escritas, a pulsação dos li-
vros, começando muito bem por Pes-
soa e viajando pelo qualificado romance de Flaubert, com sentido
pedagógico, apontando a uma meta-
morfose que afinal nos consome, to-
dos os dias cada vez mais. Há os
engaiolados da miséria, da água e do fogo, e há os engaiolados por
eles mesmos, como tantos que, à nossa voltam, repetem sempre a sua
inconsequente aprendizagem.