segunda-feira, agosto 30, 2010

Indigestão

Não te mostres triste, porque ofendes. Não te mostres glorioso, porque ofendes. Não te mostres envaidecido, mesmo com discrição, porque ofendes. Não te mostres caloroso, porque ofendes. Não te mostres frio, porque ofendes. Não te mostres a existir, porque ofendes. Não te mostres.

Vergílio Ferreira, in «Pensar»


Na era bizarra que vivemos actualmente, em que tudo o que parece não é, em que tudo o que é, não aparece, haja o retorno a Deus e às Divindades Pagãs para que nos protejam da má fama. Como a mulher de César, com ou sem razão, podemos ser para sempre votados ao ostracismo. Até há relativamente pouco tempo, ainda acreditávamos no Estado de Direito e havia que confiar na Justiça, mas o meu velho Meursault é eterno e adapta-se a todas as circunstâncias. Nem sempre podemos estar na defensiva, por vezes entra-se no jogo de outrem e de repente, sem nos darmos conta, porque o sol, a luz, o calor, o ruído nos altera os sentidos, dispara-se e quebra-se o equilíbrio do dia. Não deveria ter acontecido, mas depois da pedra atirada, nada a fazer.

Não se trata aqui da morte do corpo de alguém, mas por vezes a morte do espírito é bem mais dura. Porque nada é claro, porque nada é honesto, porque a frontalidade é coisa do passado, tudo gira em volta deste excesso de informação que nos é imposta como um McDonald de que todos devem gostar, atirado sobre a presa que tem de alimentar-se e nem sabe como encontrar um alimento são, não geneticamente modificado, não aquarificado, não aviculturado, não pesticificado. Tudo é falsificado, afinal. Os comportamentos não são francos, não há responsabilidade, todos têm medo porque há demasiados tectos envidraçados por onde penetra a corrupção imparável, a camada de ozono cada vez mais frágil, o sol queimando cada vez mais, também aos que não se expõem nas praias para bronzear-se, aos que procuram esconder-se na sombra que não existe. 

Não entendo nada do desporto que já nem é, esse mundo do futebol que me parece de pura ficção. Sempre li que o Prof. Carlos Queirós era um excelente professor, orientador de jovens, mas que lhe faltava pulso para orientar estrelas de alto gabarito a quem é preciso mostrar que o campo é aqui no planeta Terra e não no Cosmos. Demasiado educado, demasiado prudente, talvez. Não sei, não conheço Carlos Queirós, nem pessoal, nem profissionalmente, a minha relativa simpatia pela pessoa advém de ambos termos nascido no continente africano. Acompanhei os despedimentos sucessivos de vários treinadores que não levaram os respectivos países onde se esperava no recente Mundial da África do Sul. Portugal quis ser diferente e disse que mantinha o seu treinador, contra muitas opiniões de adeptos e dirigentes. Não tenho a certeza de terem sido sérios os mais altos representantes do país em relação a ele.

António Lobo Antunes é um Senhor das Letras, reconhecido neste país e no mundo. As suas obras denotam que foi marcado profundamente pela sua prestação como médico na guerra de Angola. Septuagenário, recentemente saído da convalescença de um cancro, continua a escrever, a verter em palavras, em frases belíssimas, quantas vezes desconexas, a marca dos seus pensamentos sofridos. Como é possível que, precisamente aqueles que sempre o veneraram pela solidariedade demonstrada no tempo certo, possam agora esgrimir acintosamente com palavras ditas (palavras leva-as o vento) numa qualquer entrevista de há anos. Ele disse uma frase profunda e séria: «Não se desce vivo de uma cruz».

É para ler, ouvir, pensar.

4 comentários:

Manuel Veiga disse...

reconheço razão no que dizes. sempre com elegância e serena convicção.

beijos

Rocha de Sousa disse...

«Não se desce vivo de uma cruz».
Foi tão intenso, contido e verda-
deiro o seu post que não tenho pa-
lavras, agora, para o comentar: só
posso agradecer-lhe e deixar-me fascinar pela sua indignada lucidez.

Nilson Barcelli disse...

Não sei por que os teus textos, verdadeiras crónicas, não são publicados por uma revista de qualidade. Na "Visão", por exemplo. É que o que escreves, tem qualidade. Na forma e no conteúdo.

Do futebol, também sou treinador de bancada...
O grande problema é que não temos equipa.
E não havendo equipa que prete, não há treinador que se salve. Quando ele é um Carlos Queiroz, pessoa sem carisma e, portanto, sem capacidade de liderança, as coisas ainda ficam pior.
E depois temos uma Federação Portuguesa de Futebol composta de pessoas (pelo menos a maioria) sem valor, sem competências directivas, etc., etc.
No futebol português ainda há uma liga moribunda a ajudar à missa, que só atrapalha...
Depois, qual cereja em cima do bolo, existem os árbitros que são classificados por gente que é nomeada ou eleita pelos clubes, em vez de pertencerem a uma entidade independente dos clubes...
Com tudo isto, bons resultados desportivos seriam milagres... e ninguém desce vivo da cruz...

Querida amiga, bom fim de semana.
Um beijo.

M. disse...

Parece ser difícil para alguns serem fiéis a si próprios. Bem compreendo as tuas perguntas.