segunda-feira, junho 14, 2010

Caminhos



Mon amour pour avoir figuré mes désirs
Mis tes lèvres au ciel de tes mots comme un astre
Tes baisers dans la nuit vivante
Et le sillage de tes bras autour de moi
Comme une flamme en signe de conquête
Mes rêves sont au monde
Clairs et perpétuels.

Et quand tu n'es pas là
Je rêve que je dors je rêve que je rêve.

Paul Eluard



Não sei o caminho. Só quando o tecto se abrir e o azul derramar sobre a anhara, de novo a desenhar o caminho que conduz ao rio, então saberei olhar outra vez as tonalidades de sépia do capim seco, dos morros de salalé subindo em prece, das lagoas lamacentas que ladeiam o rio, da areia fina por entre os tufos de ervas altas, verdes, encharcadas.

Aqui o sol também aquece e as flores desdobram as cores sem nome em cambiantes de luz, flores mais perfeitas em jardins cuidados, cheirando a perfumes e perfumes cheirando a flor. Os caminhos são marcados e lisos, há túneis e pontes pousadas de leve nas águas, caminhando nelas por entre a bruma, galgando o rio. Nem há que enganar. É só seguir o rio até à foz e o estuário mostra os pássaros classificados que em cada ano passam e pousam e procriam. Os homens passam longe e são delicados, não espantam, não caçam, não têm espingardas.

Segundo os clássicos latinos e gregos (conforme refere a obra «Le Livre des Êtres Imaginaires»), as Lamies eram seres que habitavam a África e cujo corpo de mulher belíssima até à cintura continuava depois em forma de serpente. Alguns as consideravam feiticeiras, outros monstros malfeitores. Não tinham o dom da fala, mas o seu canto era melodioso e enfeitiçava quem o ouvia. Nos desertos, atraíam os viajantes para em seguida os devorar, e dizia-se que tinham uma longínqua origem divina, eram fruto dos muitos amores de Zeus. Moviam-se com tal agilidade que se confundiam com pássaros.

Não tenho a certeza se as aves se importam, sei que hoje, aqui, as gaivotas enchem a cidade, as cidades, não procuram o peixe para alimento, antes as sobras dos homens. E sei, porque me dizem, que há muitas aves a caminho da extinção.

2 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Este belíssimo texto parece confir-
mar a pessoa que o escreveu, entre
a memória das lagoas verdes e lama-
centas, um mundo impossível da be-leza racional, com gente que sabe ou indica caminhos, as Lamies em cânticos oceânicos da sua própria mitologia, e a simpatia das gaivo-
tas que já não picam sobre as águas na pesca vital, antes se con-
formam, preguiçosamente, a tomar
para si os restos periféricos dos
lugares onde o homem começa a entrar em extinção.
Não são apenas certas aves, certas
espécies, são também os humanos na
sua terrível alucinação antropofá- gica.

M. disse...

Uma certa tristeza que pressinto neste texto tão bonito.