sábado, maio 08, 2010

Apesar das rosas



– "Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um alcaide é de nunca entregar, por nenhum caso, o seu castelo a inimigos, embora fique enterrado debaixo das ruínas dele?"
– "Sei, oh meu pai! – prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não ser ouvido dos castelhanos, que começavam a murmurar. - Mas não vês que a tua morte é certa, se os inimigos percebem que me aconselhaste a resistência?"
Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do filho, clamou então: - "Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do castelo de Faria! Maldito por mim, sepultado sejas tu no inferno, como Judas o traidor, na hora em que os que me cercam entrarem nesse castelo, sem tropeçarem no teu cadáver."

Alexandre Herculano in «Lendas e Narrativas»

 

O fascínio da água cresce devagar por entre a chuva que eu gosto de olhar nas gotas pousadas no verde das folhas, nas pétalas das flores, principalmente quando o sol descobre e se reflecte nos cristais das lágrimas contidas.

Das brumas, do outro lado do oceano, o mundo novo que dominou a última metade do século, quer eternizar-se no poder. O poder que cria dependência e onde todos os métodos são válidos quando o objectivo é irracionalmente a droga, seja ela qual for, sem impedimentos no uso de todos os meios para justificar o único fim. Que importa a pobreza, os suicídios, a destruição das conquistas tão sofridas de gerações, que importa a miséria e a fome, o sofrimento dos outros. A posse dos bens materiais acima de todos os afectos, acima do que dá sentido à vida, do que faz do homem o ser racional, solidário e leal, o homem que sonha um mundo melhor.

O velho mundo tem de manter-se eternamente humano e digno, crente na manutenção dos seus valores de integridade, para que possa dominar pelas melhores razões, dominar pelo perfume das rosas que os ventos espalham nas pétalas que voam, nas sementes dos choupos que revolteiam e cobrem a terra escura de branco.

Tem de magoar-se nos espinhos, deixar sangrar os dedos, abrir-se aos ventos, deixar-se vergar até que a tempestade passe. Misturar as lágrimas com a chuva, semear, plantar a horta, onde só há jardim. Apesar das rosas.


2 comentários:

Adriano Drumond disse...

Belíssimo seu texto!! Poesia em prosa...

Por coincidência tenho lido muito Alexandre Herculano. Estou com as "Cartas sobre a história de Portugal". Era um homem admirável, não só pelo conhecimento histórico e pela competência literária, mas também pela inabalável firmeza moral. O mundo precisa de mais Herculanos!

Justine disse...

Tão difícil é sempre a tomada de consciência! Mas vamos caminhando para lá, devagar, com o corpo a sangrar de todos os espinhos que se vão cravando...