terça-feira, março 30, 2010

Encontro



Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas
Que felicidade é essa que pareces ter — a tua ou a minha?
A paz que sinto quando te vejo, pertence-me, ou pertence-te?
Não, nem a ti nem a mim, pastor.
Pertence só à felicidade e à paz.
Nem tu a tens, porque não sabes que a tens.
Nem eu a tenho, porque sei que a tenho.
Ela é ela só, e cai sobre nós como o sol,
Que te bate nas costas e te aquece, e tu pensas
noutra cousa indiferentemente,
E me bate na cara e me ofusca. E eu só penso no sol.
Alberto Caeiro



Felicidade é apenas uma palavra. Questionarmo-nos sobre ela não é mais do que procurarmos na nossa vida aqueles pontos que servem de referência a acontecimentos breves que nos fizeram sentir bem e por tal nos deixaram a marca.

Como significante, é uma palavra ilusória, longa, pausada, de muitas sílabas, que demora tempo a dizer. Só é fiel ao seu significado nas duas sílabas finais porque, na pronúncia do português de Portugal a última sílaba quase desaparece, já mal se sente. Já no Brasil a felicidade parece mais venturosa, mais duradoura, a palavra é dita saboreando cada sílaba, alongando até a última - fe-li-ci-da-dji – como quem se recusa a deixá-la terminar. 

A felicidade é um bem fugaz, leve e efémero como uma borboleta. Quando se busca, quando se dá por ela, espanta-se e foge, ninguém lhe pode tocar. Mas ela pousa, suave e quieta, quando deixa os seus ovos no verso de uma folha de planta, num cálice, na pétala de uma corola qualquer. E vai permanecer para sempre, de cada ovo minúsculo vai um dia surgir outra borboleta e mais outra e outra ainda.

E é preciso estar atento, sentir, pressentir o bater de asas em cada voo iniciado.

5 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Muito bem,lindo trecho como sem-
pre, que medita, explica e lembra
os favores da língua, a brevidade
das sílabas (como as borboletas) e
o esvoaçar das palavras num sopro
de busca e perda.
Afinal, talvez os brasileiros não tenham razão: se eles querem ator-
doar-se com o ilusório, está no seu
direito. Mas nós temos a língua e a
história dela. E hoje felicidade é
uma palavra longa (uma vida) que se
vive deixando-a baixar de tom, fa-
lecendo em «de» num mundo onde tudo
é mais ou menos passageiro, como a
borboleta. Bonito e passageiro.

Justine disse...

Muito estimulante, a tua "semântica brincadeira":))

M. disse...

Muito interessante esta tua reflexão.

Manuel Veiga disse...

escrita belíssima. como o toque da seda...

beijos

Nadine Granad disse...

Belo espaço!!!
Gostei de viajar contigo!!!

Abraços =)