sexta-feira, fevereiro 05, 2010

Amanhãs



– Está bem, dou-lhes todos os informes que desejam ter, mas sejam francos: quem são vocês e a que andam? Declaro-vos à fé de quem sou que nunca na vida vi em naus mercantes tanto mancebo junto, com ares de tudo menos de pegar fardos às costas. E não levem a mal que vos diga, ou na vossa terra as sedas da China são tão baratas que andam aos pontapés, ou tão pouco vos custaram que não lhes ligais grande estimação. Se assim não fosse, não estariam ali aqueles amigos a jogar aos dados peças de damasco, como se se tratasse de feijões!

Fernão Mendes Pinto in «Peregrinação

 


Apetece rasgar a névoa, a cassa que cobre o horizonte por detrás do cortinado de chuva branda em que acordou a manhã. Afinal, os dias crescem devagar, e os bolbos que ficaram na terra despontam em promessas de cor a anunciar a Primavera, a mesma que os ciclamens oferecem já ao calor e à luz que se entrevê.

Não há bem que sempre dure, nem mal que não cure, diz a sabedoria do povo. As mesinhas caseiras ou os remédios que propõe a indústria farmacêutica resolvem sempre a questão, quanto mais não seja, dando novo rumo aos males a que continuamos sujeitos, acordando outros piores ou alongando o sofrimento até à exaustão.

Assim parece acontecer na política que conduz os destinos deste país pequeno e bonito, que sofre de doença não diagnosticada ou de incapacidade dos médicos resolverem o que os exames confirmam. Não sei se é este o caso. Sei, com certeza, que é ao doente que compete ter vontade de ser restabelecido da doença que o consome. Sem isso, nada feito.

Mas nada é irreparável, também as flores morrem, que o fruto vem aí com as sementes para uma nova vida. Tudo se renova naturalmente, só o bicho-homem teima em permanecer, só o Homem insiste em perpetuar-se, como se não houvesse outro amanhã.
 
 

4 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Gosto sempre das referências com que enquadra os seus textos. E gos-
to dos textos porque (até como nes-
te caso)conseguem assiduamente mis-
turar flores com atalhos azedos.Da política diz o menos possível, mas
por cima dela coloca um véu de pétalas, acabando com pintura os trocos miúdos e insensatos desta gente que já não sabe o que faz nem o que diz. Escondez a lucidez é um jogo difícil, talvez mesmo perigoso.

Justine disse...

Há amargura nas tuas palavras, apesar dos sinais evidentes de outro tempo que está a chegar! Ainda é só na natureza, mas será também nos homens...

Manuel Veiga disse...

belíssimo texto. melancólico. como os dias...

(como as plantas, também as sociedades se renovam, podando os ramos secos...)

beijos

pianistaboxeador21 disse...

Sensível. Como tudo o que vc escreve.
Não é um soneto, mas termina com chave de ouro:

"Mas nada é irreparável, também as flores morrem, que o fruto vem aí com as sementes para uma nova vida. Tudo se renova naturalmente, só o bicho-homem teima em permanecer, só o Homem insiste em perpetuar-se, como se não houvesse outro amanhã."

medo e desejo.

beijo